As distorções provocadas por certas mudanças

quarta-feira, 08 de janeiro de 2014

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades; muda-se o ser, muda-se a confiança. Tudo muda.” Luís Vaz de Camões.

O mundo está muito diferente daquele imaginado por Dante Alighieri em sua obra A Divina Comédia. O fundo do inferno, conforme a concepção de Dante, habitado pelos maiores pecadores pensados pelo poeta, permitia a convivência do demônio com os que desobedeceram às ordens superiores, sobretudo do príncipe. Hoje, o contrário prevalece: quem desobedece sente-se feliz pela transgressão que causou. Enquanto hoje os pecados relativos ao sexo, sobretudo à pedofilia, estão classificados entre os hediondos, no inferno do poeta, onde os seres humanos deveriam deixar do lado de fora toda esperança, esses pecados ocupavam o segundo círculo, muito próximo da porta de entrada e as penas eram brandas. Ali dois adúlteros cumpriam a pena enfrentando ventos fortes e continuavam juntos. As distorções se apresentam de tal modo que ninguém mais é culpado de nada. O que importa é a sagacidade de jogar a culpa para cima dos outros. Nesse caso, nem Deus escapa. O criador, tendo colocado a árvore do bem e do mal no centro do paraíso e proibindo, em seguida, que seu fruto fosse comido, acabava de contrariar a psicologia do ser que ele criou. Portanto, Deus, desconhecendo a psicologia do ser humano, passou a ser o culpado pelo pecado original, e não Adão e Eva, como explicava o livro do Gênesis.

Ira não é mais um dos sete pecados capitais. A boa ciência médica e psicológica informa a todos que a ira deve ser posta para fora. Assim, em vez do ser irado contrair uma úlcera gástrica, quem conviverá com ela serão aqueles contra os quais a ira foi jogada. Vale a sentença: quem guarda a ira contrai um tumor!

E quem informou pela imprensa ou pelos sons dos púlpitos que a inveja deve ser evitada cometeu um dos maiores equívocos da atualidade. Agora inveja foi transformada em programa de metas ou projeto. Se eu estou com ânsias de querer o mesmo carro do vizinho ou a bolsa Louis Vitton da minha comadre, nada disso é inveja e, sim, uma oportunidade de se fazer um projeto para obter o mesmo bem. 

Se o ócio era a morada do diabo, como diziam os antigos, nada disso tem sentido, se lermos o livro "Ócio Criativo” de Domenico de Masi. O momento do ócio, da preguiça, do absoluto sossego tornou-se o nicho mais perfeito da busca de novas ideias que devem instigar o ser humano em direção a um futuro mais promissor.

E, por fim, se a humanidade não pode viver sem Deus, sem religião e sem teologia, todas essas estratégias continuam existindo dentro de roupagens renovadas e bastante distorcidas. Acaso alguém duvida do convívio com três fortes teologias neste início de século, representadas pela autoajuda, pela teologia da prosperidade e pelo empreendedorismo?

Pois bem, a autoajuda só ajuda a quem a promove. O ajudado é quem sustenta o ajudador. Na teologia da prosperidade, o ingresso numa determinada religião passa a ser a garantia de sucesso imediato e o empreendedorismo a razão de todos os sucessos.

Se Camões dizia em seu verso que tudo estava mudando, seja o tempo, seja a vontade, concluímos ser o poeta português bastante verdadeiro. A humanidade conseguiu atender ao lusitano, mesmo ao preço de grandiosas distorções.


Professor Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e palestrante


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Hamilton Werneck

Hamilton Werneck

Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.

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