A multisseriada de Anagé do Orvalho

terça-feira, 04 de novembro de 2014

Se você procurar no mapa da Amazônia Legal não encontrará esta cidade de nome duplo, no entanto ela existe na divisa entre o estado do Maranhão e do Pará.

Iniciei meu magistério lecionando em classes multisseriadas do interior, uma delas numa fazenda antiga e na sala de aula havia três séries. Dei conta do recado inspirado na pedagogia de um amigo professor que comparava as multisseriadas às caldeiras dos navios a vapor. Você trabalharia como se fosse um bico de óleo, borrifando a caldeira que estava com menor pressão. A orientação designava, assim, a prioridade do trabalho. Para facilitar, a sala foi dividida em três grupos de carteiras. Eram velhas e duplas, pesadas e difíceis de serem manejadas. Àquela época pouco ou nada era falado sobre trabalho em grupo, mas dilatando a experiência de meu orientador desenvolvia trabalhos em duplas de alunos.

Inventei outra estratégia interessante de cooperação: quando deviam fazer exercícios, juntava nas carteiras duplas um aluno mais adiantado e outro de série anterior, geralmente com dificuldade. Nesta sala de uns 30 alunos, pelo menos dez eram monitores temporários. Eles, ao ensinarem, ajudavam ao professor e fixavam mais o que haviam entendido em aulas anteriores. Assim atravessei alguns anos na longínqua década de 60, quando o Brasil tinha uns 40% de analfabetos puros. As crianças aprendiam, embora as condições não fossem tão favoráveis. Mas esta minha experiência não foi a que vivenciei como orientador de professores em Anagé do Orvalho. 

Quando pensei que tudo sabia sobre multisseriadas e me arvorava em prover com alguns dados uma doutoranda em Cabo Verde, onde as salas são todas com esse perfil, visando auxiliá-la na tese de doutoramento, encontrei-me na Amazônia Legal diante de algo que poderia ser enviado ao Guiness book. Tratava-se da maior multisseriada do mundo.

Numa sala, quando os alunos não ultrapassavam o número de trinta, a professora com formação de ensino médio, antigo curso Normal ou de Formação de Professores, lecionava para crianças desde o primeiro ano até o nono. Eram nove anos escolares dentro do mesmo espaço, desafiando a criatividade pedagógica de mestras que não tinham conhecimento além do quinto ano, nas disciplinas de português, matemática, história, geografia e ciências.

Queria descobrir o segredo! Numa conversa franca com as professoras — que somavam onze, o mesmo número dessas salas —, fui surpreendido por uma incrível criatividade. 

– Como vocês conseguem lecionar para grupos tão pequenos distribuídos por tantos anos escolares?

– Professor, nós dividimos os alunos em três grupos: iniciantes, intermediários e avançados.

— Então, disse-lhes, os avançados não ultrapassam os conhecimentos definidos para o quinto ano?

— Verdade, professor, a gente só ensina o que sabe.

Acabara de receber uma grande lição de ética! Estava diante de professoras honestas que faziam o possível, embora não tivessem conhecimentos para atender à demanda dos alunos. E este caso era, à época, insolúvel, apesar de ser o início deste século. Nem com helicópteros sanariam as deficiências por causa do clima e das distâncias, além da falta de pessoal capacitado.

Perguntei-lhes sobre as pautas a partir do sexto ano e constatei, embora de modo muito reservado, que estas pautas tinham a transcrição dos conteúdos correspondentes às séries indicadas, sem que o conteúdo lecionado ultrapassasse o nível do quinto ano, dentro do que elas dominavam em relação ao conhecimento. Na língua inglesa, essas não ultrapassavam mesmo o famoso verbo To Be! Nem atingiam todos os tempos e modos. 

Nada interessante para comentar e constatar porque depois de três décadas da minha experiência com multisseriadas, encontrara alguma coisa muito pior. Mas era o que podia ser feito e elas o faziam! 

Apesar das agruras pedagógicas com que alguns secretários de Educação devem conviver, preocupa-me muito mais as classes das áreas urbanas, onde os alunos chegam ao nono ano com conhecimento dos conteúdos do quinto, mesmo com professores licenciados e sem convivência de classes multisseriadas. E quando constato que estas escolas amazônicas distam décimos de outras urbanas e até bem equipadas, reconheço que o Enem deveria premiá-las pelo milagre pedagógico que realizam.


Professor Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e pallestrante.


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Hamilton Werneck

Hamilton Werneck

Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.

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