A Grécia Antiga, o Brasil de hoje e o Enem

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Lá pelo século VI antes de Cristo, a cidade-estado de Esparta exerceu uma grande influência, sobretudo na península onde se encontrava pela estrutura de sua sociedade e pelas artes militares.

Se verificarmos as camadas sociais espartanas, encontraremos uma minoria de espaciatras, um grupo maior de periecos e o estamento dos hilotas. A proporção era, aproximadamente, de 10 espaciatras ou a camada social mais bem situada e com direitos políticos de legítimos representantes do povo espartano; 100 periecos, sem os plenos direitos políticos, porém, livres, conseguindo a sua sobrevivência no comércio e nas atividades artesanais; 200 hilotas, completamente sem direitos, eram escravos e trabalhavam na terra de seus proprietários.

Considerando nossa população acima dos 15 anos de idade, teríamos, no Brasil de hoje, 4,5 milhões correspondentes aos espaciatras, 45 milhões de periecos e 100 milhões de hilotas. É verdade que nossa realidade apresenta diferenças. Se somássemos os formadores de opinião, aos industriais, aos promotores do agronegócio e aos portadores de diplomas de ensino superior teríamos o número de espaciatras bem aumentado, atingindo em torno de 15 milhões de brasileiros. Isso diminuiria um pouco os periecos e os hilotas.

Esparta, àquela época, considerava tão importante o conhecimento que o restringia somente aos espaciatras e o proibia aos demais. Esta sociedade tinha uma organização paramilitar que nós poderíamos chamar de milicianos, por exemplo, denominada "cripteia”. A função desta era emboscar tanto os periecos quanto os hilotas que se apresentavam como detentores de conhecimentos próprios dos espaciatras. Portanto, quem se arvorasse em conhecer algo proibido poderia ser morto em uma emboscada.

Como na cidade-estado de Esparta, nossas classes detentoras de conhecimento não gostam de concorrência. Diante da inexistência de uma "cripteia”, várias manifestações surgem buscando evitar que algum perieco ou hilota possa ser favorecido.

Parece-me que, agora, ficará fácil entender algumas atitudes de corporações colocando-se contra medidas que possam favorecer alguns excluídos de nossa sociedade.

Em passado recente, as seleções já estavam feitas através do acesso à comida, aos remédios e às condições sociais desde o útero materno, aliando-se a este mecanismo uma escola para os mais bem situados economicamente e, outra, para os que não tinham voz e oportunidades. Quanto ao ingresso na universidade, não é necessário dizer que os vestibulares antigos eram a verdadeira "cripteia” de nossa sociedade. 

Ora, dirá o leitor, o que tem a ver o Enem com esta situação? Tem tudo a ver. Sendo uma seleção mais progressista que os antigos vestibulares, emerge um leque maior para receber pessoas que podem mudar de estamento social, sobretudo quando alguns elementos aliados entram em cena como as bolsas do governo para alunos carentes que ingressam no ensino superior pago, as cotas para vários tipos de cidadãos que não tinham oportunidade alguma, bolsas de estudo no exterior e até a importação de mão de obra.

Mas, apesar de todas as mudanças do Enem, que apresenta uma visão sistêmica e complexa, procurando levar em conta o contexto das questões, mesmo assim ele ainda tem muitos resquícios de "cripteia”, ceifando os que não tiveram ensino básico de boa qualidade.

Por esta razão, preocupa-me o tratamento que a educação recebe porque, seja pelo baixo salário dos professores, seja pela qualidade do ensino público, seja até pelas greves políticas e intermináveis e pelas tentativas de boicote às cotas, estamos tentando fazer ressurgir uma "cripteia” disfarçada e atualizada. Mais interessante é que ela vem sempre coberta com uma capa de qualidade, mas retirado este disfarce, surgirá sua verdadeira face.

Portanto, cuidado: Esparta e sua "cripteia” representam totalitarismo, escola para pobre continuar pobre, também!


Prof. Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e palestrante


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Hamilton Werneck

Hamilton Werneck

Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.

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