Zé da Graxa

terça-feira, 21 de março de 2017

...chamados de urubu, transformaram um bicho nojento na mais admirada ave do Brasil

A oficina ficava espremida entre uma borracharia e um ponto de jogo do bicho (atividade extinta há décadas no Brasil, mas que, sendo o Brasil o Brasil, achava-se ainda em pleno funcionamento). Não era, portanto, o endereço mais nobre da cidade. Isso não impedia que Zé da Graxa tirasse dali os trocados com que, bem ou mal, sustentava a mulher, um filho de sete anos e uma filha de dezesseis.

O apelido se justificava, porque nem só no trabalho Zé da Graxa vivia engraxado da cabeça aos pés. Há tantos anos futicava qualquer motor que lhe aparecesse pela frente que a sujeira daí decorrente já fazia parte de sua figura e da sua personalidade.

Apesar de não ter ultrapassado os limites da quarta série primária, era homem de discutir os mais relevantes assuntos com a eloquência dos grandes oradores. Assustadora era a veemência de seus discursos e o arrebatamento com que falava de suas três grandes paixões: a politica, o Flamengo e a Escola de Samba Unidos do Sobe e Desce.

Incapaz de vencê-lo no campo limpo da argumentação serena, seus adversários tentaram transformar seu honrado apelido em motivo de zombaria. Muitos chegavam a provocá-lo quando, ao vê-lo passar, gritavam de longe: Vai graxa, doutor?”

Lembrava-se tanto de Carlos Lacerda quanto do Flamengo que, chamados de urubu, transformaram um bicho nojento na mais admirada ave do Brasil. Adotou o “da Graxa” com orgulho e com ele tornou-se conhecido e comentado. Não perdia oportunidade para cantar o hino do Mais Querido. Apoiava os candidatos do governo (qualquer governo), por motivos ideológicos e, sobretudo, pragmáticos. Subia e descia morro pedindo votos para homens ricos e limpos, ele que era sujo de graxa, e de bens materiais possuía apenas um desbotado terno azul-marinho, uma Variant 85 e a oficina, que pouco mais lhe rendera além do apelido.

No samba, aliciava cabrochas, passava livros de ouro, mantinha aberto o barzinho da agremiação. Não acreditava em Deus, mas, tanto na Igreja quanto no Centro, agradecia a Deus por nunca ter se desviado do caminho reto: torcer desde criancinha pelo Mengão, permanecer sempre fiel à sua escola de samba e ser um homem duplamente religioso. E se o criticavam por declarar-se ao mesmo tempo católico e umbandista, respondia que na urna os votos do altar e o do terreiro valiam a mesma coisa.

Depois de várias eleições trabalhando para fulano e beltrano (“Menos capazes do que eu!”), resolveu apoiar-se a si mesmo. Participara de muitas campanhas vitoriosas. (“Tenho serviços prestados ao povo!”). Contaria com o apoio dos políticos a quem sempre ajudara, dos sambistas em geral e da imensa torcida Rubro-Negra.

Sua única dúvida era com qual nome concorrer. Como Manuel Carlito dos Montes não era ninguém, mas como Zé da Graxa era uma potência eleitoral. Indeciso, reuniu a família para deliberar sobre o assunto. Fez um belo discurso falando das vantagens de uma vereança: cargo de confiança para a filha, vaga na escola para o menorzinho, lugar no palanque para a mulher nos dias de Carnaval e em outras datas cívicas. Sem falar no salário que, não sendo a razão de seu ingresso na vida pública, também não era de se jogar no lixo.

Criado o clima, colocou em votação o essencial da questão: Manuel Carlito dos Montes ou Zé da Graxa? A filha pediu a palavra e desancou a segunda hipótese: sentia-se humilhada por aquele apelido. Ainda mais porque, chamando-se Maria das Graças, era tratada no colégio por Maria das Graxas. E desandou no maior berreiro.

O clima emocional contaminou a votação: o nome oficial ganhou por três a um. Até o moleque de sete anos atreveu-se a votar. Zé da Graxa suspirou: “A voz do povo é a voz de Deus” e foi à luta. Andou léguas entregando santinhos e cartas em que, com o slogan “Um homem limpo”, pedia votos para o laborioso cidadão Manuel Carlito dos Montes.

Que teve dezoito votos, contra os 2.150 prometidos a Zé da Graxa. Nenhum dos dois estava eleito. Mas se tivesse trabalhado em cima do nome pelo qual era conhecido... Ficou uma fera, quis bater na filha que, por uma vaidadezinha besta, impedira uma vitória retumbante.

Começou a pensar nas próximas eleições. Como Manuel Carlitos dos Montes era um anônimo, mas como Zé da Graxa era um tsunami de votos! E a partir daí, mesmo em casa, se alguém o chamava pelo nome oficial, corrigia com enérgica polidez:

- Zé da Graxa, por favor. Zé da Graxa!

 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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