Verdades sobre a mentira

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Ninguém irá perguntar ao vencedor se ele disse a verdade

Tem tanto tempo que eu li “Os Miseráveis” que pode ser que eu esteja inventando isso. Mas, se bem me lembro, há uma passagem do livro em que o implacável inspetor Javer está perseguindo sua obsessão, Jean Valjean, e este se abriga num convento. A freira que o recebe tinha feito a solene jura de nunca mentir, ainda que dizer a verdade lhe custasse a vida. Quando Javer pergunta a ela se Valjean está escondido no convento, ela diz que não, quebrando sua jura diante de Deus e da polícia, sendo que Deus sempre perdoa, mas a polícia raramente.

Eis aí um exemplo de mentira generosa, daquelas que às vezes a pessoa é obrigada a dizer para, mentindo, fazer o bem. Porque mentir é às vezes a mais sábia e santa das decisões. O que deve fazer o médico quando um doente terminal lhe pergunta, todo esperançoso: “E então, doutor, boas notícias?” Recomendar ao paciente que vá para casa se despedir da família, ou dizer-lhe para não se preocupar: “Claro, Você tem muito futuro!”? , enquanto pensa consigo mesmo: “Mas há de ser no céu, isso se você tiver a sorte de ir para o céu”.

Verdade e mentira podem ser um doce na boca ou uma punhalada no coração. Bem diz a canção “Mensagem”: “Quanta verdade tristonha/ ou mentira risonha/ uma carta nos trás”. Se um ditado diz que a mentira tem perna curta, outro rebate que uma mentira muito repetida acaba passando por verdade. Há quem acredite que Elvis Presley não morreu, e não falta quem afirme tê-lo visto, se duvidar em alguma praia brasileira, tomando caipirinha e cantando samba. E quantas pessoas já estiveram num disco-voador, não em filme de Hollywood, mas ao vivo, cara a cara com os alienígenas?  

Algumas lorotas passam à História, sendo que a própria História frequentemente não passa de história da carochinha. Bem se diz que em toda guerra a primeira vítima é a verdade. Em agosto de 1939, soldados alemães ocuparam uma emissora de rádio... alemã. Em seguida, iniciaram uma transmissão, segundo a qual poloneses haviam tomado a rádio e dali enviavam mensagens, incentivando ataques contra a Alemanha. Hitler, que é mãe da mentira (o pai vocês sabem quem é), pôs-se a declarar que, bonzinho como ele era, há muito vinham se empenhando pela paz na Europa. Mas, diante da agressão dos polacos, só lhe restava a opção de revidar. Saiu-se então com a peta que ficou como uma das frases mais falsas de todos os tempos: “Desde às 5h45 estamos respondendo ao fogo inimigo”. Como ele mesmo declarou em outra ocasião: “Ninguém irá perguntar ao vencedor se ele disse a verdade”.

Há sérias dúvidas sobre a autoria da famosa “Até tu, Brutus, meu filho!”, atribuída ao imperador Júlio César. Começa que Brutus não era filho do ditador romano, mas apenas seu protegido. Historiadores antigos afirmam que César apenas cobriu a cabeça com a toga vermelha, enquanto de todos os lados lhe vinham punhaladas. A de Brutus entre elas. Mas bastou que Shakespeare, colocasse a frase na boca do personagem da peça “Júlio César”, para que ela se fincasse na história como verdadeira.

Mas talvez as mentiras mais graves sejam aquelas que contamos para nós mesmos. Já ouvi falar num distúrbio psíquico em que a pessoa, frequentemente uma mulher, acredita que alguém, mais rico, mais famoso, mais importante, está apaixonado por ela e com ela pretende se casar, assim que se livrar do obstáculo que impede a união (por exemplo: a esposa). Na cabeça dessa pessoa, tudo que a outra faz é uma declaração de amor por ela e para ela.

Por isso, cara leitora, se você acredita que as canções de amor que Chico Buarque compõe são dedicadas a você e que é para você que Roberto Carlos joga rosas durante o show, embora haja um oceano de distância entre o palco e sua casa... te cuida, madame!  É hora de procurar um psiquiatra!

1º. de abril de 2019

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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