Colunas
A verdadeira história da mala
Seguindo o mandamento bíblico, dava dinheiro à esquerda, sem que a direita soubesse. E vice-versa
O nome do homem é Rocha Loures, mas, para que ninguém desconfie de que estamos falando dele, vamos chamá-lo de Locha Roures. Sim, porque, em sua humildade, ele não haveria de querer que viéssemos a público defendê-lo, como se houvesse cometido algum crime. Verdade que saiu correndo ao ver os jornalistas, mas agiu assim porque, sendo tímido desde criancinha, ficou nervoso, com medo de ter que falar diante de microfones e câmeras.
Lembram-se dele, não? Locha Roures é aquele cidadão apanhado com certa mala contendo quinhentos mil reais. Sendo ele próximo do presidente da República, logo a conhecida maldade da Polícia Federal o acusou de estar recolhendo propina para o poderoso amigo. Com certeza vocês também não se esqueceram de que nosso personagem acabara de se encontrar com o representante de uma grande empreiteira. A qual, aliás, sem nenhum outro interesse que não a grandeza da pátria, fez muitas e generosas doações em dinheiro a políticos e a altos funcionários públicos. Empresa tão desprendida que permitia que o beneficiado escolhesse receber em reais ou dólares e, se fosse conveniente para ambas as partes, até depositava a grana em algum banco estrangeiro. Empresa tão religiosa que, seguindo o mandamento bíblico, dava dinheiro à esquerda, sem que a direita soubesse. E vice-versa.
Mas nada disso é novidade. O que me comoveu até as lágrimas foi saber que Locha Roures conseguiu provar sua inocência, contando à Justiça o que verdadeiramente ocorreu na famosa noite da mala recheada. Grave erro é julgar pelas aparências. As aparências enganam, ainda mais quando estão correndo pelas calçadas, à noite, e assustadas. Reproduzo aqui, a bem da verdade, o que de fato aconteceu, segundo as palavras que, entre soluços e lágrimas, nosso amigo pronunciou diante da lei.
“Excelência. Tinha eu ido saborear uma pizza com um amigo e eis que a conversa estava tão animada – lembranças de infância, futebol, família! – que esqueci que tinha um voo marcado para aquela mesma noite. Lá pela tantas, é o meu próprio amigo quem dá um tapa na testa e exclama: ‘Locha, você vai perder o avião!’ Custei a entender, Excelência. Avião é coisa muito grande, ninguém perde avião como se perdesse uma caixa de fósforo. E, para falar a verdade, eu nunca tive avião na vida. Aí, me lembrei do voo. Levantei e já ia embora correndo quando meu amigo gritou: ‘Locha, a sua mala! Você está esquecendo a mala!’ Naquela pressa, Excelência, nem pensei: peguei a mala e fui embora.
“Não imagina Vossa Excelência a surpresa que tive quando, ao chegar à porta da pizzaria, vi lá fora câmeras, microfones e, pior ainda, Excelência, carros da Polícia Federal. Quem não ficaria nervoso numa situação assim? Foi por isso que, inocente como era e sou (juro pela minha mãezinha), corri calçada afora. “E o voo?”, perguntará Vossa Excelência. Varreu-se-me da memória, como se dizia antigamente . Só ao chegar em casa é que reparei na mala. E então me perguntei ‘Mas que diabos de mala é essa? O que será que ela contém?’ Veja Vossa Excelência a pureza de minh´alma! Em nenhum momento desconfiei de meu amigo. E, no entanto, ele havia posto em minhas mãos quinhentos mil reais, que eu não sei de onde vinham ou para onde iam’.
“Finalmente, Excelência, resta explicar como, dos quinhentos mil reais, a polícia só encontrou quatrocentos e sessenta e quatro. A única explicação que me ocorre são as traças, Excelência. Sabe Vossa Excelência como as traças de Brasília adoram dinheiro. Creio que, enquanto eu tentava entender aquele mistério, algumas delas entraram sub-repticiamente na mala e devoraram os trinta e seis mil que faltam.
“Essa, Excelência, a mais pura expressão da verdade. Juro, juro... Por Deus não, mas juro pelo presidente da República!"
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário