Velharias

quarta-feira, 07 de agosto de 2019

Receitas para salvar o corpo, orações para salvar a alma

Também a natureza, para colocar gente nova no mundo, vai removendo aquelas que há mais tempo estavam ocupando lugar. Às vezes a natureza se equivoca e antes da hora retira de cena um ator que deveria permanecer no palco ainda por muitos atos. A Visita Indesejável chega para todos, mas é tolerável, se vem no momento justo, quando o visitado já percorreu uma longa estrada e está pronto para caminhar nas nuvens. Quando se precipita e chega cedo demais, a Terrível Visitadora tanto erra na pessoa que leva consigo quanto deixa nas que ficaram a marca de sua triste passagem.

Sim, é preciso abrir vagas — nas cidades e nos campos, nos mares, bares e luares. Também nas gavetas e armários. Novas roupas e sapatos, retratos e documentos querem lugar. Tudo grita: cheguei! E exige espaço para se acomodar. Somente o coração vai se alargando e, quanto mais sentimentos e emoções, quanto mais perdas e danos, quanto mais risos e lágrimas acumula, mais recantos disponíveis parece ter. O coração, quando nele nada mais cabe, não transborda, apenas se fecha como um livro que guardasse todas as palavras, para nunca mais ser lido.

Também eu precisava jogar fora algumas velharias, antes que os armários, não suportando mais o peso do excesso de objetos e de lembranças, se quebrassem e espalhassem pelo chão as coisas sem valor que ficaram e, ficando, se tornaram valiosas.

Pois para que guardar, por exemplo, a declaração do Banco da Lavoura de Minas Gerais, onde por três anos fiz contas, geralmente erradas, segundo a qual mensalmente eu embolsava o astronômico salário de NCR$ 207,46, ou — para esclarecimento dos mais jovens —, duzentos e sete cruzeiros novos e quarenta e seis centavos? A declaração é firmada por um gerente que já está no mais alto dos céus, quem sabe aproveitando a sua experiência de bancário para apurar o saldo de pecados e virtudes de cada um que, depois dele, chega e pede pousada. No verso da declaração, o cartório reconhece como verdadeira a firma de outro gerente, cuja assinatura, aliás, não figura na folha.

De que serve a caderneta escolar do Colégio Cêfel, na qual estão registrados os altos e baixos de minha vida de estudante noturno? Quem será que, talvez pensando em fundos de gaveta, registrou numa folha este pensamento simpático, ainda que banal: “As alegrias estão no fundo das coisas; pertence, porém, a cada um saber descobri-las”. Bilhetes de amor eterno, mas que era vidro e se quebrou. Poesias juvenis, transbordando adjetivos e pontos de exclamação, como convém a toda má poesia. Receitas para salvar o corpo, orações para salvar a alma. E este pedaço de poema, cujo autor nunca descobri: “Crer é acreditar em alguma coisa/ Que o nosso eu não compreende/ E quem de nós, crente ou incréu, quem ousa/ Dizer que além de nós tudo repousa/ Tudo é silêncio, um mausoléu se estende?”

Pelo visto, não atendi a solicitação da pessoa que me deu um cartão em que duas mãos se tocam, sobre a inscrição “keep in touch”. Tanto não keepamos que já nem sei de quem o recebi. E mais documentos que foram sendo renovados ao longo dos anos, nos quais, não sei por que misteriosa razão, em cada um pareço mais velho e mais feio do que no anterior.

O que fazer com essas e tantas outras velharias há muito guardadas? Resolvo jogá-las fora. Separo as mais imprestáveis, abro a lata de lixo ... e ponho tudo de volta na gaveta.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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