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Uma dívida, uma dúvida
Sim, pesa-me na consciência ter causado tão grande dano ao erário
Honrou-me o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro com o envio de uma estrondosa multa de R$0,76. Para os mais incrédulos, escrevo por extenso: setenta e seis centavos, valor que, na intimação que me enviaram, está em letras maiúsculas, que é uma precaução das autoridades para que depois o devedor não diga que não viu ou não entendeu. Sinceramente, não é uma importância que vá me levar à ruína, e eu até poderia, em face de tão inesperada dívida, declamar esses versos parodiados de Camões: “Muito mais eu pagaria se não fora/ para tão longo mês tão curto o salário”.
Muitos dizem que nossos governantes são incompetentes. Não me levem a mal, mas tenho que discordar. Eles são tão super-competentíssimos que merecem o exagero do adjetivo. Das altas esferas para baixo, as coisas funcionam exata e perfeitamente do jeito que foram feitas para funcionar. De baixo para cima é que tudo emperra.
Veja o caso das roubalheiras desenfreadas que estão sendo descobertas e quão pouca gente foi presa ou devolveu o dinheiro. A que se deve isso, senão à perfeição com que, há décadas, os corruptos vêm criando leis para se protegerem de alguém que se atreva a querer julgá-los. Julgar até pode, faz-se um falatório danado, manchete nos jornais, capas de revistas. Isso até é bom, torna o sujeito mais conhecido, rende votos na próxima eleição. Enfim, julgar pode, o que não pode é condenar. E, para evitar que tal absurdo aconteça, as leis estão aí, em pleno funcionamento.
Se o cidadão tem a infelicidade de dever ao Grande Irmão Arrecadador, ainda que seja apenas R$ 0,76, não tem escapatória. Ou paga agora, ou pagará mais tarde, com juros, mora, IOF, Taxa Selic, CPMF, IPVA, IPTU e tudo mais que eles puderem acrescentar. Já no caso de o infeliz ter a receber do governo, melhor desistir. Ou apelar para São Judas, o santo das causas impossíveis. Mas a verdade é que eles não costumam dar confiança nem mesmo a São Judas. A mim, então, é que eles não dão sequer resposta, tanto que há tempos pedi o ressarcimento de um valor pago a mais e até hoje ninguém veio me mostrar a cor do dinheiro, tampouco me mandaram uma carta, o que pelo menos seria mostra de boa educação. Para falar a verdade, eu já não contava muito com o dinheiro. Uma cartinha, no entanto, não aliviaria muito meu bolso, mas um pouco aliviaria pouco meu coração de cidadão e contribuinte.
Enfim, estou decidido a pagar, e, para tanto, tenho procurado umas moedinhas que costumo deixar no fundo das gavetas. Cidadão exemplar que sou, pretendo até desembolsar um pouco mais do que os centavos pedidos. Porque, embora eu tenha tido a vaidade de esperar que me escrevessem para me informar sobre o reembolso que requeri, reconheço que o governo não pode gastar dinheiro à toa. Já basta a despesa que dei, sonegando R$ 0,76. A papelada que me mandaram, cobrando essa vultosa importância, não deve ter ficado por menos de uns R$ 100. Basta considerar quantos servidores, do juiz ao carteiro, estiveram envolvidos nessa meritória operação. Sem falar no papel para a carta, no envelope e na cola para fechá-lo. E mais o transporte da valiosa carga, desde a capital do estado até a minha humilde residência.
Sim, pesa-me na consciência ter causado tão grande dano ao erário. Mas, por outro lado, não teria sido melhor para ambas as partes se eles simplesmente ignorassem a minha dívida, poupando assim R$ 99,24 aos cofres públicos? Eis a questão que – respeitosamente - submeto aos responsáveis pela economia municipal, estadual e nacional.
Por ora, peço-lhes apenas que verifiquem amanhã a conta corrente do Tribunal, quando confirmarão que o saldo, graças à prontidão com que atendo as ordens superiores, engordou R$0,76!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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