Um voto mortal

terça-feira, 21 de junho de 2016

Muitos são os cargos, muitas são as verbas, grande é o coração e pequena a memória do povo

Acabo de ler uma notícia que, se fosse em outro país, causaria alguma estranheza, mas, sendo no Brasil, passa por fato corriqueiro. Ocorre que, numa eleição para o diretório estadual do PT no Rio de Janeiro, um filiado, embora ausente, votou na chapa vencedora.   Bastante ausente, por sinal, uma vez que havia falecido há algum tempo. Quanto tempo? Bem, já ia para três anos, mas mesmo que fosse apenas há um segundo, seria difícil (em outro país, é claro) que ele comparecesse à votação, fizesse seu xisinho na cédula e retornasse ao local de onde viera. Local que, pelo pouco que se sabe a respeito, fica bem distante da Terra.

Para uns, fica acima: no céu; para outros, abaixo: vocês sabem onde. Mas, de qualquer forma, bem distante.

Fiel ao partido, o petista não apenas votou no primeiro turno, em novembro, como retornou a este mundo em dezembro para votar no segundo turno. Embora tenha perdido a eleição por mais de mil votos, o candidato derrotado entrou na justiça, pedindo a anulação do pleito, com o argumento razoável (em outro país, é claro) de que morto não vota (em outro país, é claro).

Verdade que nos Estados Unidos foi eleito para o senado um compatriota falecido meses antes da eleição. Mas, com a alta tecnologia espacial de que dispõem, não terá sido difícil aos americanos trazê-lo para assumir o cargo. Pois se o próprio George Bush, que tinha o grave defeito de ainda estar vivo, tomou posse!

A justiça brasileira, ágil como ela só, vai resolver o problema. Creio que em menos de dez anos sairá a sentença. Até lá, fica o dito pelo não dito, a vida continua. Pode dar-se o caso de que, entre a apelação e a decisão final, a vida tenha deixado de continuar, tanto para o vencedor quanto para o derrotado, e os dois já estejam discutindo o assunto no além.

Também é possível que, ao menos lá, eles cheguem a um acordo. Por exemplo: o eleito interceder junto aos seus correligionários que ainda estejam aqui embaixo para que o talento dos filhos do derrotado seja reconhecido e eles ganhem altos cargos no governo. Quanto ao morto-eleitor, no além tudo se perdoa, e sua família também não há de ficar desamparada.

Mas nem havia necessidade de recorrer à justiça, ou a esperar pela vida eterna para resolver a pendenga. Coisas extraordinárias acontecem, sobretudo na política. Que um morto tenha votado, e votado duas vezes, é bastante compreensível (no Brasil, é claro), pois quem mais do que um falecido pode julgar com sabedoria as intenções dos candidatos?

Nós, os vivos (por enquanto), votamos tão mal que devíamos mesmo deixar essa tarefa para quem já se foi. Não precisa mais agradar a ninguém, não depende mais de favores e pouco se lhe dá se o salário diminui ou a inflação aumenta. Até mesmo se os políticos estão roubando (em outro país, é claro) lhe é indiferente.

Como confessou Machado de Assis pela boca do falecido Brás Cubas: “Senhores vivos, não há nada mais incomensurável do que o desdém de um defunto”.

Resumindo, o homem votou duas vezes, e o fato de ele estar morto não impediu que os votos fossem computados. A quem se sentir prejudicado, resta esperar pelo acerto na vida eterna, ou recorrer à nossa justiça, que tanto tarda que também parece infinita.

O mais provável, no entanto, é que os envolvidos façam um acordo aqui mesmo, e sem muita demora. Afinal, muitos são os cargos, muitas são as verbas, grande é o coração e pequena a memória do povo. Não vamos agora brigar por causa de dois votos vindos do mundo dos mortos, pois só sobrevive na política quem é muito vivo. 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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