Colunas
Um quase-romance
Mesmo estando fora do páreo há algum tempo, ainda balançava os corações femininos
Um grupo de senhores da meia idade em diante, todos vividos e vívidos bastante para ter histórias a contar. Um deles se atreveu a abrir a memória e o coração, e o amor tomou conta da conversa, como uma caixa de água que transbordasse e despejasse um dilúvio teto abaixo. Cada um se lembrou de um caso, às vezes bem sucedido, às vezes fracassado, mas todos, a acreditar nos narradores, dignos de um livro, ou ao menos de um poema. Um deles filosofou: “Não existe ex-amor. Se hoje é ex, nunca foi amor”. E, romântico, concluiu: “Ter amado alguém é como ter sido fumante. Você pode ficar sem fumar por 30 anos, mas estará sempre sujeito a uma recaída. O jeito é nunca mais olhar para o cigarro!”
Um advogado, cabelos já rareando, tinha sido na juventude daqueles que faziam as moças suspirar duas vezes: primeiro de paixão, depois de decepção, quando ele as dispensava e ia arrancar suspiros de outros corações. Um de seus encantos, vejam só como o tempo é cruel, era justamente sua vasta e engomada cabeleira. Esse passado de glórias fez com que todos se calassem quando ele, data vênia, tomou a palavra:
Não que eu seja vaidoso, mas o fato é que eu tinha lá meus encantos. Por ocasião desse episódio, no entanto, praticamente já tinha abandonado a minha até então bem sucedida carreira de conquistador. Vamos ao caso. No escritório trabalhavam dezenas de funcionários, não dava para conhecer bem a todos eles. Porém, mais de um romance tinha começado ali, entre projetos e processos, sessões no fórum, idas e vindas aos cartórios. O advogado-chefe sentenciava: “Duas coisas são importantes: Namorar aqui dentro não pode”. E concluía, depois de alguns segundos de suspense: “E eu quero ser padrinho do casamento!”. Aplausos gerais.
Até que, certo dia, uma funcionária com quem eu trocava bons-dias e boas-tardes, e com quem uma vez tinha trocado presentes de amigo-secreto, pediu para falar comigo em particular. “Vai falar mal de algum colega”, pensei eu. E assim pensando fui conversar com a moça numa sala reservada. Grande engano, meus senhores! A jovem começou devagar, comentando o tempo (chovia lá fora) e outros assuntos de igual urgência, importância e gravidade.
- Conta logo! Parece advogado! Reclamou alguém.
Mais um gole de cerveja e o narrador continua:
Pois a colega, por sinal bem bonitinha, me disse que estava apaixonada, e me perguntou se eu achava que ela devia se declarar. Mas antes de dar minha opinião, ficasse eu sabendo que o objeto de sua paixão era um homem casado e pai de dois filhos. Talvez houvesse outros no escritório que se encaixassem. Mas só pensei em mim mesmo: homem, casado, dois filhos.
- Eu não deixava escapar! Exclamou o mesmo que tinha interrompido antes.
Nada disso - respondeu nosso herói, com alguma tristeza na voz. Pra falar a verdade, vacilei. Como eu disse, a moça era bonitinha. Mas eu quase nem me lembrava mais daquela vida, minha fama de sedutor eram águas passadas, ou éguas passadas, como diria algum piadista de mau gosto. Não nego que me senti lisonjeado. Mesmo estando fora do páreo há algum tempo, ainda balançava os corações femininos.
Talvez vocês não acreditem: a lembrança da esposa e dos meninos falou mais alto. Saí pela tangente. Cada caso é um caso... não quero te julgar mal... casamento é coisa séria... e tem as crianças... E por aí fui eu, com medo de magoar a pobre coitada, tão apaixonada por mim a ponto de vir se declarar. Mas foi ela mesma quem pôs fim à conversa:
- Eu sei de tudo isso. Mas o Raul também me ama!
Raul era o nosso contador. Casado, dois filhos. E careca!
Foi um golpe doloroso na minha autoestima. Um quase-romance e uma definitiva pá de cal na minha fama de galã irresistível!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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