Um olhar

quarta-feira, 25 de julho de 2018

O olhar foi suficiente para que eu perdesse toda a voz e a minha pouca coragem

Quem não conhece o samba “Tiro ao Álvaro”, de Adoniran Barbosa: “Teu olhar mata mais que bala de carabina/que veneno estricnina”? Trata-se de um daqueles olhares que derretem o gelo e fazem ferver o coração apaixonado. Um tipo de olhar que mata, mas de amor, pois de amor também se morre, como nos ensina o poeta Gonçalves Dias: “Amá-la sem ousar dizer que amamos,/E, temendo roçar os seus vestidos,/ Arder por afagá-la em mil abraços:/ Isso é amor, e desse amor se morre”.

Mas há outros olhares. Antes de levar o assunto adiante, quero deixar claro que respeito e admiro todas as profissões, inclusive a dos dentistas, com seus ferrinhos zumbidores (zumbi e dores ao mesmo tempo), e a dos professores de matemática, com seus números e inúmeros mistérios. Dito isso, fica claro que respeito e admiro também os policiais, de quem tanto dependem a nossa segurança e tranquilidade. Portanto, o caso a seguir é sobre uma pessoa, e não sobre uma instituição. Vamos a ele.

Vinha eu caminhando pela calçada quando um rapaz passa por mim, correndo e visivelmente assustado. Logo atrás, vem um grupo de seis ou sete homens, mas, antes deles, chegam aos meus ouvidos os gritos de “Pega ladrão!, Pega ladrão!” Imediatamente percebi que ninguém ali estava participando de uma corrida recreativa, nem a hora nem o local eram apropriados para isso.

Continuo caminhando, e mais adiante ouço uma gritaria que não posso reproduzir aqui, em virtude de o palavreado dominante ser daqueles que se devem evitar, sobretudo na forma escrita. Direi apenas que cruzavam o espaço os mais desagradáveis palavrões da língua portuguesa, e olha que em nosso idioma não são poucos os palavrões desagradáveis, tanto que já têm até dicionário específico sobre o assunto. Se você quer enobrecer o seu vocabulário, é só consultar uma dessas obras.

Quando chego ao local de onde partem os gritos, vejo o rapaz encolhido num canto do muro, enquanto os homens lhe dão chutes e sopapos. Pacifista que sou desde criancinha, me aproximo do grupo e timidamente sugiro que parem de espancar a pobre criatura, e chamem a polícia. Você me deu alguma atenção? Nem eles. Enquanto os espancadores falavam delicadezas sobre o rapaz e sua mãe, ele gritava que não era ladrão, e sim trabalhador. Vá lá saber! De qualquer forma, não me parecia que aquela era a melhor forma de apurar a verdade. Mas nunca falta quem ache que a violência é uma boa solução para as divergências de opinião, e até temos um candidato a presidente que pensa assim.

Mas eis que, de repente, aterrissa no local uma viatura policial (talvez haja aí um pleonasmo, porque só carro de polícia é chamado de viatura), da qual descem dois musculosos soldados, fuzis a tiracolo. Com eles chega uma esperança para mim: vão acabar com essa violência. Mas qual! enquanto um parlamenta com o grupo, o outro fica a certa distância, observando o movimento. E seguem os tapas, chutes e gritaria.

  Então me aproximo do homem da lei e, não tendo como recomendar que ele chame a polícia, respeitosamente (o homem era forte e portava um fuzil) peço que ele faça os agressores pararem. Meus amigos, o olhar que o policial me dirigiu era de fazer tremer até um super-herói, quanto mais eu, que sou medroso por natureza. Era mais que um tiro de carabina ou fuzil, era um tiro de canhão. “O senhor está vendo a polícia bater em alguém?”, perguntou ele. E ainda se deu ao direito de fazer julgamento sobre meu caráter, certamente me avaliando por seus próprios valores: “Se fosse o senhor que tivesse sido roubado, não estava defendendo bandido”. Mas o que eu estava vendo era apenas a polícia não impedir que batessem em alguém fraco e indefeso. 

Mas o olhar! O olhar foi suficiente para que eu perdesse toda a voz e a minha pouca coragem. Fui saindo de fininho, certo de que para descrever aquele olhar talvez fosse necessário um poeta como Gonçalves Dias, ou um cientista como Albert Einstein, para quem: “O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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