Colunas
Um gato em minha janela
Ora, eu nunca medi a duração do amor dos gatos, e não
podia dar uma opinião
abalizada sobre o assunto
Na verdade, eram dois. Pior ainda: um casal. Não que eu seja contra os gatos, menos ainda contra o amor, e ainda menos contra o amor entre os gatos. Mas na frente da minha janela! Tenha paciência!
Pois, acreditem vocês, numa dessas noites de inverno em que o maior desejo de consumo que um ser humano pode ter é que desabem sobre ele todos os cobertores do mundo, o que me acontece? Estava eu dormindo o sono dos justos — embora não seja um deles — e eis senão quando começa uma infindável miação em frente ao meu quarto.
Acordei assustado e pensei que finalmente chegara o tantas vezes anunciado fim do mundo. Aos poucos minha modesta inteligência foi voltando ao normal e comecei a perceber que não haveria de ser em miaus que o mundo iria se acabar. Sim, o fim do mundo, se houver e quando houver, há de ser algo mais grandioso, hollywoodiano.
Depois, nem eram miaus, era uma alternância de vozes em que a primeira, que me parecia masculina, soltava longos uivos, tal e qual um apito de fábrica ouvido à distância. A outra voz eram gemidos alternados, que bem poderiam ser de alguém longamente esfaqueado, desculpem a comparação sangrenta. Minha mulher, horrorizada com a falta de discrição do casal, resmungou, sonolenta: “Será que eles demoram muito?” Ora, eu nunca medi a duração do amor dos gatos, e não podia dar uma opinião abalizada sobre o assunto. Respondi que esperava que fosse apenas a famosa rapidinha.
Mas não. Aquilo durou, meus amigos. O homem, quer dizer, o gato era uma fera. A tal ponto se prolongou o romance que resolvi levantar, tremendo de frio e de raiva, e acabar com a farra. É desumano, eu sei, mas quando se quer dormir e não se consegue, o coração fica empedernido. E naquele momento meu coração estava mais frio do que meu dedão do pé ou a ponta do nariz.
As mulheres são assim, querem mandar no mundo, mas quando algo de estranho acontece de madrugada, sejam gatos se amando ou ladrões arrombando, é o marido que tem que levantar. Lá fui eu. Arma, não tenho. Deliberei então apelar para a solução habitual contra gatos, que é jogar-lhes água fria. Como bom estrategista que sou, resolvi antes localizar o inimigo. Acendi as luzes e fui olhar pela janela. E eis, meus senhores, a lição que se tira desse episódio e que fica sendo a magna razão desta crônica. Ao contrário dos namorados humanos, em especial os adolescentes, que adoram se atracar nas calçadas, de modo a serem vistos pelo maior número possível de passantes, os gatos preferem amar no escuro e nos lugares menos frequentados. Tanto é assim que, mal acendi as lâmpadas, e o par de apaixonados disparou janela afora, cada um para o seu lado.
Voltei para a cama, mas não consegui pegar no sono, ou melhor, o sono é que não conseguiu me pegar de novo. Com pena dos gatinhos, fiquei pensando que os pobres bichos estavam apenas cumprindo uma imperiosa lei da natureza. Mas dormir sossegado é outra das imperiosas leis da natureza. Naquele dorme não dorme, tive a ideia absurda (bem, talvez não seja tão absurda) de sugerir ao governo municipal a criação de motéis gratuitos para gatos e outros animais, com uma ala só para cachorros, que também não se avexam de dar espetáculos públicos. Eu não me incomodaria nem mesmo de pagar um imposto destinado à manutenção dos petmotéis que se abrissem em nossa cidade.
A essas alturas, minha mulher também estava inteiramente acordada e começamos a conversar sobre o amor ruidoso dos felinos. Bem, vocês sabem como é: um assunto puxa outro, conversa vai, conversa vem, das palavras aos atos é um instante... aí mesmo é que nós não conseguimos dormir!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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