Um brasileiro

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Certa vez, um jornal noticiou que, durante um tiroteio, haviam morrido “cinco pessoas e um mendigo”

Temos agora um novo morador nas proximidades de minha casa. Cheiroso, embora não perfumado, laborioso, embora desocupado, com endereço fixo, embora sem casa. Nem sei se o posso chamar de morador, afinal, sua residência é apenas um canto da calçada de uma repartição federal.  Seu castelo pode desmoronar a qualquer instante, basta que o guarda, num ataque de mau humor, venha enxotá-lo com o cassetete. Bem, há de ter pensado ele, se o órgão é do governo, é do povo, e eu sou do povo. Na verdade ninguém mais povo do que eu. Por enquanto, vai ficando ali, valendo-se do direito constitucional de ir e vir, do qual se deduz também o direito de ficar.

Cheiroso, sim: o perfume que dele emana chega ao outro lado da rua. Laborioso, está sempre em atividade, às vezes raspando a placa de lama grudada nos pés, às vezes dobrando um velho cobertor, até lendo jornal eu já o vi. Estabeleceu moradia naquele canto de parede, onde dorme com a serenidade dos justos e acorda com a lassidão de quem sabe que dará conta de todos os compromissos do dia, visto que tem pela frente vinte quatro horas para gastar não fazendo nada.

Nada fazer é um grande desafio, precisa-se procurar o que fazer o tempo todo. Imagino que sua primeira iniciativa seja dirigir-se às matas próximas, onde fará aquilo mesmo que fazem todos os seres humanos, quer trabalhem na bolsa de Nova Iorque ou no palácio de Buckingham, quer não trabalhem no Congresso Nacional ou na calçada da Receita Federal.

Depois, sente fome, olha para o céu, olha para os lados. Do céu só vêm uns pingos de chuva; dos lados, só o latido dos cachorros, tão desocupados e famintos quanto ele próprio. Sim, é preciso comer. Mesmo os mendigos e os cães vadios precisam comer. Queiram os céus que nos jantares de ontem tenha havido muita sobra, o que lhe garantirá o café/almoço desta manhã que tão alvissareira se anuncia.

Após o que, é passear pela cidade, de rua em rua, sem destino, sem lenço nem documento. Acaso se canse, não há de faltar a sombra de uma marquise sob a qual durma um pouco, para recuperar as energias. E, apesar dos transeuntes que passam falando alto, na maior falta de consideração pelo repouso alheio, dorme e sonha com camas cheirosas, mulheres bonitas, comidas fartas. Sobretudo mulheres bonitas, daquelas que vê nas revistas que cata pelas ruas.

Bem, já está anoitecendo, a Receita com certeza já encerrou o expediente. Hora de voltar para casa, agora desimpedida daquele pessoal que entra e sai, sempre às voltas com problemas de dinheiro, geralmente reclamando que o governo está lhes tirando mais do que justifica a sã moralidade e a boa justiça distributiva.

Deitado, sem nada com que se preocupar, aceita o Desafio que o Senhor fez a Aarão, nos tempos bíblicos, e começa a contar as estrela. Antes de chegar à milésima, adormece. No dia seguinte, passo em direção ao trabalho e ele está ainda se espreguiçando, ou lendo o jornal da semana passada, assim colocando dentro da cabeça as notícias que nos últimos dias, fora dela, lhe vinham servindo de travesseiro.   

Outras pessoas passam pela calçada e, como eu, ninguém lhe dá bom dia, ninguém lhe diz como vai. Talvez um dos passantes intimamente se pergunte como um homem, que parece jovem e saudável, chega a essa desintegração de si mesmo, a ponto de tornar-se indiferente à indiferença dos que o veem sujo, maltrapilho, desgrenhado, a própria pobreza recostada nas ricas paredes da Receita Federal.

Talvez, quem sabe, saiu de sua cidadezinha atrás de emprego. Trabalhou numa obra, a obra acabou. Despedido, nada mais conseguiu. Um mês... dois... seis. Foi gastando suas poucas moedas, morou numa pensão modesta, depois em alguma construção inacabada, depois em bancos da praça. De queda em queda, acabou vizinho dos moradores aqui do bairro, vizinhos, mas tão distantes que nenhum se aproxima dele.

Passamos como se ele não tivesse história. Como se não existisse. Como se fosse apenas uma sombra na parede. Certa vez, um jornal noticiou que, durante um tiroteio, haviam morrido “cinco pessoas e um mendigo”.

Também esse que agora se levanta para permitir que o governo comece a arrecadar dinheiro, também esse deixou de ser pessoa para nós, é apenas e não mais que um mendigo.

E, no entanto, como diz o poema de Mário de Andrade, “Esse homem é brasileiro que nem eu”. 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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