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Três histórias de futebol
I - O cartola
Levantei para pegar o revólver, mas nem acabei de esticar as pernas, porque não tinha revólver. Como já estava a meio caminho, dei-lhe um sopataço por cima da orelha que o desgraçado voou mais alto do que passarinho assustado. E muito mais ia apanhar se não desse marcha a ré e saísse correndo. De vergonha nenhuma na cara, ainda gritou da porta: “Depois a gente conversa melhor, doutor!” Logo pra mim, que malemale terminei a 3ª série nas mãos de dona Zenilda Damasceno. Mas uma coisa: 30 anos de futebol a limpo. Em muito alambrado tinha eu espremido a cara, acompanhado times pequenos, médios e quase grandes antes de chegar à Federação e ao Departamento de Arbitragem. Dinheiro, do meu bolso. Até aluguel paguei para muito Pelé que vinha salvar o time, deixava a gente na lanterninha e ia embora. Nunca que levei um centavo, deveras. Orgulho, tinha: 30 anos de honesto, eu mesmo não conhecia caso igual. Agora vinha aquele tereré, cheio de dedos: “O doutor merece uma compensação, tantos anos de sacrifícios...” Deve ter ficado uma semana com o ouvido sem funcionar!
Eis, porém, que se o Timboense chegasse à primeira divisão, eu levava coisa de dez mil dólares. Quando passou a raiva, vi que não era pouco: dava pra tomar uns uísques. Dois dias depois, estava eu vendo o treino do meu amado Cruz Dourada, quando o sujeito sentou ao meu lado. Ao sair, tinha esquecido um embrulho perto de mim. Apanhei o embrulho e fui embora. Achei que era uma safadeza o Timboense ficar de fora. Um timinho tão esforçado bem que merecia uma chance.
II - O torcedor
Passei quatro anos juntando dinheiro. O apelido de unha de fome foi o de menos. Triste era ficar em casa nos fins de semana, vendo televisão. Roupa, nem pensar — quando minha calça azul-marinho ficou azul-pálido, Tetê ameaçou dar o fora: E eu me casei para passar necessidades? E rolou para o outro lado da cama. Exceto a fome, nada mais me fazia abrir a carteira. Desaprendi a usar cheque. No final da Copa da Argentina, tinha tomado a decisão: Na próxima eu vou. E fui, sinceramente. Porque no mundo só uma coisa mais do que futebol me deixava endoidecido.
No hotelzinho modesto, cheio de estrangeiros com o dinheiro contado, Sarita (“nome que mamãe me deu em homenagem a uma cantora”) cismou logo comigo. Vejam só, eu fazendo sucesso no México. De noite a gente foi tomar um trago, eu e Sarita, mulher que não acabava mais. Quando me vi em mim, estava num ônibus a caminho do subúrbio onde a peste tinha uma quitinete, dois passos depois do fim do mundo. E eu precisando ver a Copa, sonho e pesadelo de quatro anos. Mas a quitinete era desse tamaninho, um fogão, duas cadeiras, um calendário pregado na parede. E a cama.
Quando botei a cara na rua de novo, a fim de comprar um band-aid para o pescoço e saber se o mundo ainda existia, descobri bestificado que a Itália engrupira a gente. Xinguei uns palavrões que tinha aprendido com Sarita nas horas de maior entusiasmo e voltei para a quitinete, pensando: Como é que vou explicar essa derrota lá em casa?
III - O craque
Ainda no tempo do 4-2-4, ele deu na cabeça de sair da área e ir tocando a bola até o gol adversário. A torcida incentivava e Cléo ia em frente, para desespero do técnico Altamiro, que se esgoelava: “Arrecua, Cléo! Arrespeita o adversário!”
Naquela ocasião me deram a tarefa de tirar o desgraçado de campo, se ele começasse a fazer presepadas com os nossos rapazes. Podia até dar um tiro nele, cinco homens iam ficar em volta de mim, no meio da nossa torcida. Mas me decidi por uma garrafada, boa pontaria era comigo mesmo. Por isso me escolheram, ou porque sabiam que eu devia a Deus e ao mundo e só Deus não andava atrás de mim, querendo receber. E mais: eu era fanático de matar quem se atrevesse a tirar o campeonato do Itaicó.
Recebi o dinheiro, tomei uma cerveja no bar do estádio e saí com a garrafa embaixo do blusão. Cléo começou o baile e logo, logo, o placar anunciava um a zero para eles. Quando o miserável avançou pelo meu lado, tirei a garrafa e me preparei. Se eu tinha acertado três bagaços de laranja na cabeça do bandeirinha, não ia errar uma garrafada de tão perto. Aí ele veio, driblou um, driblou dois, o terceiro ficou caído no chão. Boa Morte avançou para cima dele, querendo justificar o apelido, mas levou um lençol que até hoje está procurando a bola. Foi a coisa mais linda que eu já tinha visto. Joguei a garrafa fora e aplaudi: “Dá-lhe Cléo!”
Na saída, me esperava a diretoria do Itaicó.
Perdi meia dúzia de dentes e até hoje tenho o nariz meio pro lado.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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