Colunas
Trabalho, aposentadoria e divagações
A morte é a mais surpreendente e a mais banal de todas as coisas que nos acontecem
Millôr Fernandes disse que quem se mata de trabalhar merece mesmo morrer. Não ouso discordar, embora saiba de pessoas para quem o trabalho é um lazer e, então, deixa de ser pesado como um elefante nas costas, e se torna um passarinho que voa. Também acho muito verdadeira a afirmação de Balzac, segundo a qual trabalhar pela pessoa amada tira do trabalho todo peso e amargor.
Mas chega um momento da vida em que se constata que é muito bom ficar à toa, sem por isso se tornar uma pessoa à toa. Eu, por exemplo, carreguei pedra por longos anos. De fato, ainda criança já conhecia o significado da condenação divina: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”, que em português vulgar ficou traduzido por “na casa do bom homem quem não trabalha não come”.
Aos treze anos já dava minha modesta, porém dedicada contribuição ao crescimento da indústria nacional. Nem por isso superamos o Japão e os Estados Unidos, mas também não ficamos piores do que já estávamos. Passei pela rede bancária, onde, modéstia à parte, não levei nenhuma instituição à falência. Se aqueles bancos fecharam, não foi por culpa minha. Acabei virando professor, e como professor fui me virando, até concluir que tinha chegado a hora de pendurar as chuteiras, como se diz no mundo do futebol.
Nessa última e decisiva ocupação, fiz algumas coisas boas e cometi também algumas burradas. Meu consolo é que no vestibular da vida ninguém acerta todas as questões. Como nas escolas em que lecionei a média para ser promovido era seis, acho que fui aprovado. Raspando a trave, talvez, mas, enfim, aprovado.
Seria bom se nos fosse dada a oportunidade de passar a borracha ou liquid paper nos erros que cometemos. Aí, calaríamos a boca com mais frequência, com menos frequência julgaríamos os outros. Eu Não teria perguntado: “A senhora é mãe dela?”, e não teria ouvido essa resposta mal-encarada: “Que isso! Sou irmã, e mais nova!”
Andei reprovando alguns alunos, aos quais agora peço tardias e sinceras desculpas, porque estou convencido de que isso em nada os ajudou. Verdade que muitos fizeram por merecer. Houve um que faltava sempre nos dias de prova, em virtude do falecimento da avó. Lá pela quarta ou quinta avó, achei que era avó demais, ignorei o luto do rapaz e mandei-o a fazer a prova, o que ele fez com cara de tristeza, não sei se por saudade da falecida ou se antevendo a nota que ia tirar.
Quando, enfim, resolvi me aposentar, recebi muitas manifestações de carinho, mas não duvido que uma ou outra pessoa tivesse comemorado, possivelmente tendo boas razões para isso. Sei que um dia vou entrar na aposentadoria eterna, mas não estou com pressa nenhuma. Até me lembro da missa em que o celebrante perguntou quem queria ir para o céu. Todo mundo levantou a mão. Eu, inclusive. Em seguida, ele perguntou: “Quem quer ir agora mesmo?”, e todo mundo enfiou a mão no bolso. Eu, inclusive.
Acho que o sentido da vida é ser feliz, contribuir para a felicidade do maior número possível de pessoas e não contribuir para a infelicidade de ninguém. Quem sabe, agindo assim a gente consiga, embora sem merecer, um lugarzinho bom para morar na eternidade.
De modo que atualmente estou me esforçando mais do que nunca para, ao partir, deixar mais saudades do que indiferença, muitos amigos e nenhum desafeto. Evito pensar ou falar mal de quem quer que seja e espero que vocês façam o mesmo em relação a mim, tanto agora quanto depois. Ao menos porque os mortos, pelo simples fato de não estarem mais aqui chateando os que ficaram, recebem um desconto de 90% em seus defeitos e um aumento de 90% em suas qualidades. Quer dizer, no fim das contas todo mundo vira gente boa, mesmo quando em vida não valia nada.
Sim, a vida é curta, e não vale a pena gastá-la no cultivo de ervas daninhas, quando há tanto espaço para plantarmos flores. O tempo de que dispomos é suficiente para darmos sentido à nossa passagem pelo mundo, sabendo que a morte é a mais surpreendente e a mais banal de todas as coisas que nos acontecem. E, com certeza, a única absolutamente inevitável.
Mas nem por isso vou me precipitar em levantar a mão.
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Prezados leitores.
Convido vocês para o lançamento do meu livro “Um gato em minha janela”, no dia 30 de setembro, sábado, das 17h às 20h, na Academia Friburguense de Letras – Praça Presidente Getúlio Vargas, 57, ao lado da Energisa. Será um prazer recebê-los.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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