Sologamia

quarta-feira, 08 de agosto de 2018

Hoje em dia, a gente dorme bem informado e, ao se levantar de manhã, não passa de um ignorante

O mundo até que vinha andando devagarinho. Levava milênios para ir de uma era geológica para outra. Foram quatro bilhões de anos mudando com cautela, gastando tempo sem fim para passar de um período a outro. A natureza não tinha pressa.  Mas, eis que de repente, parece que os freios do planeta arrebentaram, e nas últimas décadas tudo mudou tão velozmente que pessoas nascidas há uns míseros sessenta anos passaram por mais transformações do que toda a humanidade que as antecedeu.

Desde que um tio nosso desconfiou que um pedaço de pedra podia ter muitas utilidades e inventou a era da Pedra Lascada, até que um primo nosso enterrou uma raiz no chão e  descobriu a agricultura, foram pelo menos mil anos. Hoje em dia, a gente dorme bem informado e, ao se levantar de manhã, não passa de um ignorante, com uma porção de novidades para aprender e assimilar.  O progresso é muito bom, mas tanta correria às vezes nos impede de pensar e de sentir, dois bons hábitos que vínhamos cultivando desde o surgimento do Homo Sapiens, há cerca de 190.000 anos.

No quesito comportamento, veja-se o que está ocorrendo com os relacionamentos amorosos. Agora há pouco um vizinho me parou na calçada e me perguntou se eu sabia o que tinha acontecido. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo que eu nem desconfiava de qual delas ele estava falando. Diante da minha cara de “O homem mais desinformado do mundo”, ele contou que uma mulher havia agredido um casal que estava namorando perto da casa dele. Motivo: as duas senhoras são casadas (uma com a outra, entenda-se), e uma delas arrumou um namorado (do sexo masculino, entenda-se). Tendo surpreendido a traidora em pleno ato de traição, a traída achou por bem demonstrar aos tapas e gritos a sua insatisfação.

O fato é que temos visto as mais surpreendentes formas de amor, ou seja qual for o sentimento que une os casais modernos. Eu, por exemplo, nunca tinha lido ou ouvido, e muito menos falado ou escrito, a palavra “sologamia”.  Mas, ao vê-la pela primeira vez, deduzi que se compunha de solo, ou seja, só, e  gamia, que, conforme aprendemos quando estudamos radicais nas aulas de português, significa casamento. Mas o que vem a ser sologamia?, perguntava o lado perguntador do meu cérebro, sem que o lado respondedor achasse o que dizer. Mas, para isso estamos vivendo a era da alta tecnologia, em que tudo pode ser achado na internet. Lá sou informado que sologamia é o ato que pratica a pessoa que se casa consigo mesma. Como pode?

É simples. A pessoa apaixona-se por si mesma, gosta tanto de si mesma, acha-se tão incomparável que declara seu amor diante do espelho. Tendo o espelho reagido com um sorriso de contentamento e um olhar cheio de ternura, considera-se que a paixão é correspondida e, então, é hora de tomar as providências para o casamento. Que não difere muito dos casamentos tradicionais, daqueles de antigamente, em que se uniam um homem e uma mulher. Convidam-se os padrinhos, o celebrante, os amigos e parentes mais chegados. Na cerimônia, como em qualquer outra desse tipo, a noiva/noivo faz juras de fidelidade, prometendo amar-se e respeitar-se por toda a vida. Como se vê, certas palavras, hábitos e comportamentos permanecem os mesmos, mesmo nas mais radicais revoluções.

Não tenho ideia de como é a lua de mel do casamento sologâmico.  Tem coisas que nem a internet explica. Portanto, deixo por conta do leitor e da leitora imaginar o que acontece quando a porta do quarto se fecha. Haja imaginação!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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