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Sobre letras e garranchos
Inseguro, e com medo de ser morto por uma letra ruim, voltei ao médico
Não vamos falar mal de ninguém, mas há casos em que o segundo filho de uma mulher se parece com o pediatra do primeiro. Creio que isso se deve à admiração e gratidão que as jovens mães dedicam àquele que, com atenção, carinho e competência, cuida de sua cria. Há muitos mistérios neste mundo, e deles nem a genética escapa. Outra explicação possível é que, segundo uma pesquisa feita entre as santas senhoras que admitiram ter traído o marido, os pediatras ocupam o primeiro lugar. Quer dizer, alguns desses excelentes profissionais, além de cuidarem dos bebês, ainda conseguem dar alguma atenção às mães.
Mas, falando sério (caso você tenha achado que o parágrafo anterior era brincadeira), admiro os médicos em geral e tenho especial estima pelos que tratam das minhas mazelas, que não são poucas. Desde a mais remota antiguidade, cuidam de aliviar o sofrimento humano, variando apenas os recursos de que dispõem e o nome que recebem: doutor, curandeiro, pajé, facultativo, clínico, terapeuta, e por aí vai. No começo dos tempos, davam uma pedrada na cabeça do freguês para extrair-lhe um dente. A dor de dente passava, embora em geral o cara morresse da pedrada. Hoje em dia, tiram um coração inconfiável, botam outro no lugar e, no dia seguinte, o operado já está jogando pelada com os amigos.
Um caso particular é o da letra. Já lhes contei esse caso saído da cabeça de José Cândido de Carvalho (se você não conhece, não sabe o que está perdendo). Um rapaz deixa sua cidade para tentar a vida em outra maior. O patrão, que o estima, lhe dá uma carta de recomendação cheia de elogios. Mas o bom homem, que não era médico, tinha uma letra de médico, razão pela qual ninguém conseguia entender a carta que ele escrevera. Por fim, aconselharam o rapaz a procurar o farmacêutico local, profissional ido e vivido na leitura de garranchos. O homem lê cuidadosamente a carta e sentencia: O purgante custa dois mil reis e fica pronto às quatro da tarde!
Quero dedicar uma palavrinha à caligrafia de um dos meus médicos. Caligrafia não é bem a palavra, porque significa “letra bonita” e a desse se caracteriza justamente por ser bem horrorosa. Toda vez que ele me recomenda um exame ou passa uma receita, é o mesmo drama. Nas clínicas, a papelada que ele preenche passa de mão em mão. A primeira atendente se esforça para decifrar, vira a folha de cabeça para baixo, tenta a leitura vertical e diagonal e, nada conseguindo, passa a tarefa para a colega mais próxima.
A segunda vítima igualmente fracassa e manda chamar um técnico. Este, havendo um doutor da mesma área, manda consultá-lo. Na ausência desse especialista, recorre ao próprio paciente, que vai informando as dores que sente e o lugar onde dói. Os dois juntos acabam chegando a uma conclusão que, certa ou errada, decide o exame a ser feito.
Certa vez, munido de uma de suas receitas, fui à farmácia, onde foi montada uma banca examinadora para saber o que estava escrito após o nome do medicamento. A opinião quase unânime era a favor de “dose à noite”. Inseguro, e com medo de ser morto por uma letra ruim, voltei ao médico. Ele, no entanto, prontamente declarou que ali se podia ler, com toda clareza, a recomendação: “Uso contínuo”.
Tudo isso me faz lembrar a música “Mensagem”, de Cícero Nunes e Aldo Cabral, que assim termina: “Porém não tive coragem de abrir a mensagem / Porque, na incerteza, eu meditava/E dizia: “Será de alegria, meu Deus, será de tristeza?”//Quanta verdade tristonha/Ou mentira risonha uma carta nos traz//E assim pensando rasguei sua carta e queimei /Para não sofrer mais”.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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