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Se não fosse aquela chuteira!
Até hoje esse lance é o orgulho da minha família!
— Um craque! De Seleção! Pode perguntar. De Seleção!
Vendo-o assim, meio barrigudo e cambaio, não parece. Mas eu não vim ao mundo para contradizer ninguém, e balanço a cabeça em sinal de santa concordância.
— De Seleção! Pode perguntar. Se não fosse aquela chuteira...
Hoje em dia, se você quiser saber o que qualquer garoto pretende ser no futuro, tem grandes possibilidades de ouvir “jogador de futebol” como resposta. Sonho que nasce ao verem seus ídolos ganhando um dinheirão, tratados como deuses aonde quer que cheguem. O problema é que para cada abelha rainha há milhares de abelhas operárias, operárias do futebol. Essas rolam de um clube pequeno para outro menor, até serem jogadas para escanteio. Sim, muitos são chamados pelo fascínio da bola, mas poucos os escolhidos para a glória dos estádios.
E o pior é que, como acontece em quase tudo na vida, não é só o talento que conta. Há verdadeiros pernas de pau vestindo camisas famosas, enquanto outros, talvez mais talentosos, atravessam a curta carreira como quem bate um pênalti para fora, e cedo recebem cartão vermelho na memória e na estima dos torcedores. É uma questão de dar um chute certeiro, fazer o gol da vitória, substituir o titular que se machucou...
Um desses ex-futuros grandes craques me contou que sua maior glória foi aparecer na televisão.
— Você deve ter feito um gol de placa! Elogio eu (mais ou menos sincero).
— Não, eu estava era correndo atrás do Roberto Dinamite!
Pois é, por obra e graça dessas tabelas que só os cartolas sabem fazer, seu timinho tinha ido enfrentar o Vasco no Maracanã. Um desses jogos em que uma equipe faz das tripas coração, ou melhor, das canelas coração, para evitar a goleada, enquanto o outro passeia em campo, procurando não se cansar à toa. Em resumo, o Vasco vencia, mas não humilhava.
Eis senão quando, Dinamite, que até então mais parecia estar pensando na morte da bezerra, explode em direção à área adversária. E lá estava, humilde, porém honrado, o nosso narrador.
— Sem querer me gabar, parti pra cima dele! Ele quinou pra cá, pra lá e foi direto pra nossa meta, cheio de más intenções. Disparei atrás dele, mas não cheguei a tempo. Foi um gol de placa, deu até no Fantástico. Lá em casa todo mundo me viu perseguindo o Dinamite. Até hoje esse lance é o orgulho da minha família!
E agora vem esse outro, a me garantir que, se não fossem aquelas chuteiras, teria chegado à Seleção.
— Futebol eu tinha. Pode perguntar. Futebol não me faltava!
Não sei a quem perguntar e fico só ouvindo.
— Tanto que fui treinar no Botafogo. Sabe por que não fiquei? Me deram uma chuteira dois números menor que meu pé. Um pé de respeito, meu chute derrubava goleiros. Mas, com uma chuteira apertando os dedões... nem Pelé. Cheguei pros homens e falei: A chuteira tá apertada. Eles disseram que mandavam me chamar para outro treino. Tou esperando até hoje. Mas futebol eu tinha. Pode perguntar. Se não fosse aquela chuteira...
E quem de nós, olhando a vida pelo retrovisor, não há também de se lembrar de ao menos uma situação em que teve de calçar um número duas vezes menor do que o pé e, suspirando, exclamar metaforicamente: Se não fosse aquela chuteira...?
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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