Questão de tempo

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

É inaceitável que o corpo queira desobedecer àquilo que o coração decidiu

Sinceramente, quando a lama do dilúvio foi removida, eu ainda nem era nascido. Mesmo um sujeito mais recente, como Napoleão Bonaparte, só conheci nos livros de História, ou nos filmes de Hollywood. Portanto, não sou nenhum Matusalém.

Mas, pelo que sei, só existem duas maneiras de não envelhecer. A primeira, morrer jovem, é péssima alternativa. Bem razão tinha aquele senhor entrevistado pela televisão ao completar 100 anos. O repórter lhe perguntou como ele se sentia por chegar àquela idade. “A outra opção era pior”, respondeu o velhinho, com muita sabedoria.

Sim, morrer é a pior das opções, mas, não havendo até o momento outra saída, o que nos resta é prepararmo-nos para que, ao chegar, “a Indesejada das Gentes”, como a chamou Manuel Bandeira, encontre “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”, conforme desejava o poeta.

Melhor do que perder tempo pensando na morte é ganhar o tempo dando um sentido à vida. Perguntadas sobre qual seria o sentido da vida, várias pessoas deram suas opiniões. Uma das respostas mais felizes foi a de um lixeiro chamado Roy Stentaford: “Gosto de pensar: eu terei significado alguma coisa na vida de alguém”. A vida nos traz muitos problemas, mas sem ela não podemos viver. Então, o jeito é seguir em frente, cada um procurando não se chatear muito e, sobretudo, procurando não chatear muito os seus companheiros de viagem.

A outra maneira de não envelhecer é bem menos problemática. As mulheres a praticam com especial talento: consiste em não fazer aniversário, apressadamente, a cada 365 dias. Ora, isso é apenas uma tradição, um hábito, não há nenhuma lei que nos obrigue a aniversariar com tanta frequência. O tempo é eterno e cada um pode dividi-lo como achar melhor. Dessa forma, há senhoras que chegam a levar 50 anos para  completar 30. E se as juntas teimam em ranger, a pele cisma de encarquilhar, para isso foram inventadas as academias de ginásticas, os personal trainers, os cremes e injeções, ou, na pior das hipóteses, a cirurgia plástica. Porque é inaceitável que o corpo queira desobedecer àquilo que o coração decidiu: ficar jovem sempre, para sempre na flor da idade.

Sim, cada um deve administrar o tempo como melhor lhe convier. Segundo nos conta Herbert de Souza, o Betinho, José Maria Alkmin, político mineiro que chegou à vice-presidência da República, tinha clara consciência de como essa questão de tempo é relativa. Alkmin era delegado de polícia quando um prisioneiro se rebelou e disse que só se entregava morto. Isso foi no tempo da televisão à querosene, os bandidos eram ingênuos e os delegados iam pessoalmente dialogar com os fugitivos. Pois bem, a polícia cercou o homem, mas não conseguia convencê-lo a entregar-se. Alkmin foi lá, e então ocorreu o seguinte diálogo:

- Que é isso, seu Raimundo? Por que esse desespero, essa arma?

- Seu doutor, não aguento viver aqui mais trinta anos, prefiro matar ou morrer.

- Mas seu Raimundo, o senhor pensa que vai pagar essa pena toda de uma só vez?

- Como assim, doutor, não vou cumprir pena de trinta anos?

- Sim, mas não de uma só vez, vai ser ano a ano, posso lhe garantir!

-Ah, bom. Assim é diferente! – disse aliviado o Raimundo.

 

E se entregou.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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