Colunas
Por que a Deus não peço
Resolvi não pedir a Deus que dê aos leitores e leitoras um feliz ano novo.
Eu e um amigo estávamos conversando a respeito de como Deus há de ficar embaraçado com os milhões de pedidos que, diariamente, sobem aqui da Terra até Ele. A conversa começou com a lembrança que tive de uma conhecida muito religiosa, capaz de preces espontâneas de grande beleza e intensidade.
Certa vez encontrei-a (vamos chamá-la de D. Etelvina, a bem da narrativa) e contei-lhe que uma ex-empregada dela estava doente. A tal operária de vassouras e panelas tinha abandonado o emprego inesperadamente, e logo em seguida a patroa dera pela falta de um colar (de falsos brilhantes, diria, com razão, o compositor João Bosco).
Faço aqui um parêntese para esclarecer que, meses depois, um aparelho da casa de D. Etelvina foi ligado e não funcionou. Ao abri-lo, o técnico achou lá dentro o dito colar, diante do que a freguesa exclamou, com a mão na testa: “Meu Deus, o que eu xinguei a Edite por causa disso!”
Mas, na ocasião do nosso encontro, D. Etelvina ainda estava convencida de que Edite não passava de uma ladra desleal: “E eu que tratava ela tão bem! Só de vestidos meus dei pra mais de dez, só coisa boa! O azul de bolinhas brancas foi do batizado do meu garoto, aquele que é pai do teu aluno!” Pois D. Etelvina, ao saber que a ex-empregada estava no hospital, exclamou, mui cristãmente, juntando as mãos no peito e erguendo para os céus os grossos óculos: “Que o bom Deus dê a ela morte lenta e sofrida, igual a que teve o mau ladrão!” Não sei em que Evangelho D. Etelvina leu que o mau ladrão teve morte lenta e sofrida, mas nunca me atrevo a discutir com gente que parece receber informações diretamente do Senhor.
Foi nessa altura da conversa que meu amigo me contou a história que bem nos dá razões para acreditar que Deus não pode mesmo se meter nos problemas deste mundo. Disse ele que um missionário andava enfiando o Deus branco dos povos brancos por ouvidos africanos quando foi surpreendido na selva por um leão. Correu o que pôde, mas, vendo que mesmo voando não escaparia da fera, parou, ajoelhou-se e começou a rezar: “Senhor, livrai-me deste leão, como outrora livrastes a Daniel!” O prolongado silêncio em volta convenceu-o de que sua súplica fora atendida. Criando coragem, lentamente foi abrindo os olhos. Ao seu lado, o leão, também ajoelhado, rezava: “Senhor, abençoai esta refeição que vou comer agora!”
Pois bem, pensei nisso tudo e resolvi não pedir a Deus que dê aos leitores e leitoras um feliz ano novo. Bem que eu lhes desejo um 2020 muito feliz. E não tenho a menor dúvida de que só pela graça de Deus podemos conseguir um segundo de felicidade, quanto mais um ano inteirinho. Mas estou convencido de que Deus prefere não trabalhar no varejo, atendendo a casos particulares. Deus é o maior atacadista de todos os tempos. E tanto que derramou sua misericórdia sobre o Universo com tamanha abundância que temos tudo para sermos felizes, sem precisar pedir isso e aquilo a toda hora. Bastaria que andássemos pelos caminhos que Ele nos indicou para que todos os dramas humanos se findassem.
Há guerras, misérias e tragédias sem conta? E mais as coisas miúdas que tiram da vida o doce que ela deveria ter, tais como antipatias e divergências, brigas de vizinhos, discussões no trânsito, falta de dinheiro, muita pressa, pouca paciência, vida tão curta e preocupações tão compridas? Sim, tudo isso há, mas seria bom se os homens e mulheres tentassem descascar os abacaxis que criaram sem ficar a toda hora pedindo a Deus que lhes empreste a faca. Então, caro leitor, cara leitora, desejo que saibamos descobrir os caminhos que Deus traçou para a nossa felicidade e, dessa forma, o ano que começa possa ser realmente novo e bom, repleto de paz e justiça, pleno de amor e prosperidade.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário