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Por acaso você é “they”?
Já pensou mandar um buquê de meleca para a mulher amada?
313/%! Desculpem, mas é que a notícia me pegou tão de surpresa que me esqueci da boa regra que recomenda não começar a frase com algarismos. Acontece que vi na internet — universo do não confiável —, que o velho pronome inglês “they”, que eu conheço desde a quinta série, embora até hoje não saiba falar ou usar, pois bem, o “they” foi eleito a palavra do ano por um dicionário inglês. Isso porque esse pronome, que nunca tomou partido nas discussões sobre gênero e que durante sua longa vida nunca passou de um modesto sinônimo dos nossos “eles/elas”, foi eleito a palavra “não binária” por excelência.
Agora promovido à palavra-símbolo, passa a representar as pessoas que não querem ser consideradas ou tratadas como masculinas ou femininas. São, simplesmente, “they”. Assim se explica a procura pela palavra ter crescido 313% no último ano.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, já dizia Camões. E mudam-se as palavras, acrescento eu. No mesmo poema, o próprio Camões, usa lindamente o velhíssimo verbo “soer” e o nada jovem advérbio “mor" para lamentar que tudo muda e, pior ainda, muda a cada instante de um jeito diferente: “E, afora este mudar-se a cada dia,/ outra mudança se faz, de mor espanto,/ que não se muda já como soía”. Bem diz a sabedoria popular: tirando o motorista e o cobrador, tudo mais é passageiro.
Na internet é possível encontrar muitos exemplos de palavras que caíram no completo ou quase completo desuso. “Empós” é uma delas, e só mesmo um Mário Quintana para enfiá-la num poema, sem que isso pareça coisa de velho caduco: “Pra que partir? Sempre se chega, enfim.../ Pra que seguir empós das alvoradas/ se, por si mesmas, elas vêm a mim?” “Jorna” é outra palavra já falecida, mas que deixou numerosa descendência, por exemplo: jornal e jornada. Em todas, a noção daquilo que é feito diariamente. Embora há muito sepultada na fala habitual, ainda encontra abrigo no Aurélio: “Á jorna. Por salário diário; como diarista”. E mesmo os jornais que só circulam uma vez por semana são assim chamados, com certeza porque hebdomadário, o nome correto para esse caso, parece até designar algum bicho do deserto.
“Absolto” é outra que sobrevive apenas nos dicionários, como sinônimo de absolvido. Talvez se deva usar para os casos de pessoas importantes que a Justiça não pode absolver, dada a gravidade dos crimes (e também porque o povinho faria uma gritaria danada). Mas, justamente porque são pessoas importantes, acabam sendo absoltas por essa mesma Justiça.
Como o povinho não sabe o que significa absolto, pensa que o cara foi condenado e se dá por satisfeito. Leio ainda que em Portugal é mais ou menos comum a simpática “cagalhota”, que não significa nada do que você, com sua mente poluída, está pensando. Segundo nos informam doutos internautas lusitanos, significa apenas “mulher baixinha e com pescoço curto”. Se o vocábulo fosse masculino, podia-se aplicar a um ex-presidente nosso, se bem que naquela época ninguém era macho suficiente para chamar um general de cagalhoto.
Há muito de subjetivo na escolha das palavras que usamos. Nas pesquisas para escolher as mais bonitas, amor está sempre entre as mais votadas, assim como adeus, mãe, esperança e a onipresente saudade. Todas carregadas de valor afetivo. Valem muito pelo significado que carregam, mas também pelo som com que se vestem, pois se o nome da rosa fosse meleca, a flor perderia muito do seu encanto. Já pensou mandar um buquê de meleca para a mulher amada?
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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