Olhos Azuis

terça-feira, 14 de abril de 2015

É a perfeita aplicação do ditado “manda quem pode, obedece quem tem juízo”

Não, não é sobre Frank Sinatra. É sobre a professora americana que, motivada pelo assassinato de Martin Luther King, realizava workshops destinados a combater o racismo e outros preconceitos em seu país. O resultado da experiência era impactante para os que dela participavam, e é ainda hoje  para quem assiste ao respectivo documentário.     
Jane Elliot faz um convite aberto para o encontro. Várias pessoas comparecem e, antes de mais nada, precisam assumir um compromisso: acatar todas as ordens que receberem, ainda que lhes pareçam absurdas e mesmo injustas. Quem vacila é imediatamente excluído.

A seguir, os participantes são divididos em dois grupos. Alguns vão para uma pequena sala, abafada e com apenas três cadeiras. Dois guardas negros ficam lá dentro, tratando o pessoal com toda a descortesia possível. O segundo grupo fica num auditório, acomodados em confortáveis poltronas.

Qual a diferença entre os dois grupos? Todos os que foram para o desconforto da sala ao lado têm olhos azuis. Então a professora explica aos que ficaram com ela o exercício que vai ser realizado. Quando os “prisioneiros”  voltarem da sala — suados, cansados, irritados —,  serão recebidos com descaso, deboches e provocações. Os demais presentes deverão demonstrar — de formas sutis ou, se necessário, agressivas — que consideram os recém-chegados idiotas, infantis, preguiçosos, pessoas social e moralmente inferiores.

De fato, os “olhos azuis” são recebidos com ironia e todos se referem a eles como “garoto” ou “menina”, ainda que se trate de pessoas adultas. Ao longo de duas horas e meia, desconfortavelmente sentados no chão, enfrentam o desprezo ostensivo ou, na melhor das hipóteses, aquela condescendência com que habitualmente lidamos com as crianças e os incapazes. Se suas respostas não correspondem à expectativa de quem os questiona, sem nenhuma cerimônia são chamados de burros. Aos poucos, começam a se sentir realmente infelizes e inferiores.

Perguntados por que não reagem contra os abusos e maus-tratos que estão recebendo, os “olhos azuis” respondem que, ao tentarem se defender, só conseguem ser ainda mais hostilizados e desprezados. E que são advertidos como crianças lamurientas quando tentam denunciar injustiças ou inconsistência nas acusações que sofrem. Quanto às regras, estas mudam sempre que eles descobrem nelas alguma brecha que possa favorecê-los. Em resumo, todo o poder está nas mãos de seus algozes. É a perfeita aplicação do ditado “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

A professora lhes explica por que eles merecem tal tratamento.    Apresenta a teoria de que o ser humano surgiu na África e o seu organismo, para se proteger do sol, produzia muita melanina, escurecendo cada vez mais a pele e os olhos. À medida que o homem  foi se espalhando para regiões mais frias, a produção de melanina diminuiu, e ele foi embranquecendo. 

Porém a luz, penetrando pelos olhos, que haviam se tornado claros, danificou o cérebro dessas pessoas. Daí serem os portadores de olhos azuis menos inteligentes, menos esforçados, menos capazes e, portanto, menos confiáveis do que os portadores de olhos de qualquer outra cor. Absurdo? A professora revela então o real objetivo daquela experiência: provar que ninguém tem domínio, escolha ou responsabilidade sobre a cor da pele ou dos olhos. Portanto, ter a pele clara ou escura, assim como ter os olhos azuis, verdes ou castanhos não tem a mínima influência sobre o caráter, a moral, a inteligência de uma pessoa. 

Jane Elliot então pondera: Vocês foram duramente discriminados durante este exercício, só porque têm olhos azuis. Contudo, ninguém os ameaçou com armas de fogo ou os agrediu com cassetetes, ninguém lançou jatos de água contra vocês, ninguém humilhou seus filhos, vocês não perderam o emprego e já podem ir calmamente para casa.  E, ainda assim, a experiência lhes causou muito sofrimento. Agora imaginem o que é viver assim a vida inteira, que é como vivem os negros em nosso país!

 Portanto, julgar alguém pela cor da pele é tão descabido quanto julgá-la pela cor dos olhos. O documentário atinge a nossa consciência, ao nos mostrar que somos incapazes de suportar  por poucos instantes sofrimentos que outros carregam a vida inteira, tantas vezes por causa do que fazemos ou, o que não é menos grave, por aquilo que deixamos de fazer.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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