O Amigo de Deus

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

E se Deus fizer cara feia ao ver meu nome na lista dos recém-chegados, conto com a interferência de Seu Chardelli para convencê-lo a me deixar entrar

Outro dia me perguntaram de que é que eu sinto saudade. Puxa! Eu sinto saudade de tanta coisa e a coisa de que mais sinto saudade é de mim mesmo, de tudo de mim que foi ficando para trás. Às vezes me pergunto, como fez Cecília Meireles, em que espelho ficou perdida a minha face. 

A outra, a que ainda não tinha as tantas marcas deixadas pela poeira do tempo. Uma vez acusaram Abraão Lincoln de ter duas caras e ele, que era bem feio, respondeu: "Vocês acham que se eu tivesse duas caras usaria esta?” Também eu se tivesse podido preservar a cara de anjinho com que nasci, francamente, não usaria esta. 

Mas falar em saudade me fez lembrar do meu avô. Ele era italiano, muito sério, analfabeto. Não se conclua daí que ser italiano e muito sério é uma deficiência, uma limitação, como ser analfabeto. Botei as três coisas juntas para dar uma ideia de quem era Teófilo Chardelli. Resta acrescentar que era do tipo magro, seco de carnes e de conversa. Funileiro, trabalhava no fundo do quintal, fazendo calhas de alumínio.

Enfim, em nada se parecia com o tipo bonachão e desocupado. Pois, apesar disso, dava-se ao trabalho de me buscar no trabalho e ir caminhando comigo do centro da cidade até Vila Nova. Com o detalhe que vínhamos empurrando a bicicleta com que eu saía de manhã, mas na qual não podia voltar à noitinha, criança pequena que eu era. A cidade era então muito pacata, mas qual a criança que não tem medo do escurecer? E para mim era certo que é a essa hora que mulas sem cabeça, sacis pererês e demais gente desse tipo saem para passear a assustar as pessoas, principalmente meninos com bicicleta.

Sim, na minha infância não existia esse negócio de criança não trabalhar. Trabalhava-se, e as autoridades faziam vista grossa, sob o argumento de que era melhor estar trabalhando do que à toa na rua ou ajudando a família a passar necessidade. Ainda hoje há quem pense assim, como se não houvesse outra hipótese, a correta. Ou seja, a criança estudando e brincando e os adultos ganhando o suficiente para manter a família.

Mas não estou aqui para denunciar meus antigos patrões, nem para fazer campanha salarial. Resolvi falar de meu avô. Imaginem a cena, vínhamos ele, eu e a bicicleta, os três naquele silêncio cansado que gruda na gente depois de um dia de trabalho. Ele não era de conversa fiada, muito menos de contar história. Mas sua presença quieta e altiva, uma das mãos no meu ombro, outra no guidão, já era em si uma bonita história, a história de um menino e seu avô voltando para casa.

Tão bonita que, tantos anos depois, me lembro dela, e sinto saudade. Queria ser capaz de deixar no coração de meus netos uma lembrança assim, boa. Nada de grandes feitos, de sacrifícios heroicos. Mas a imagem da mão no ombro e, por que negar, da moedinha que de vez em quando ele me dava para comprar uma bala.

Já disse que ele se chamava Teófilo, que significa "amigo de Deus”. E muito me consola a certeza de que ele está lá, com o amigo dele, os dois jogando conversa fora, olhando para este mundo e coçando a cabeça com ar preocupado. O poeta Camões se perguntava "se lá no assento etéreo, onde subiste,/ memória desta vida se consente”. Se assim for, talvez meu avô sinta saudades daquele neto que eu fui, talvez até mesmo Deus sinta saudades do que era o mundo naquele tempo, e que ficou tão diferente a ponto de achar que não precisa mais de Deus, que pode funcionar por conta própria.

E me consola porque, embora com certeza eu não mereça, espero ir ao encontro deles, quando eu tiver partido para me tornar apenas uma vaga saudade na memória de meus netos. E se Deus fizer cara feia ao ver meu nome na lista dos recém-chegados, conto com a interferência de Seu Chardelli para convencê-lo a me deixar entrar. E até não duvido que lá esteja também a minha velha bicicleta e então eu, criança de novo, sairei pedalando nas nuvens, amparado pela mão de seu Teófilo, amigo de Deus e para sempre meu amigo

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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