Na corda bamba (ou: O bamba na corda)

quarta-feira, 07 de setembro de 2016

Não creio que eu desejasse que o infeliz se arrebentasse contra a ponte de ferro

Ou você é muito jovem ou esconde a idade e, em qualquer dos casos, não vai admitir que se lembra do trem. Que trem? Eu falei que você não ia admitir. Mas não faz muito tempo que ele passava pelo centro da cidade, fazendo com a fumaça de sua chaminé desenhos que se esgarçavam no ar. E não é sem carinho que muita gente guarda essa imagem no “comboio de cordas que se chama coração”, como disse o poeta.

Acho que o trem nunca recebeu dos friburguenses as homenagens que merecia, pelo muito que fez por nossa terra. Uma vez colocaram uma locomotiva ali na praça. Era um monumento e, ao mesmo tempo, uma página da História, aberta diante do povo. Destruíram também isso e no lugar deixaram um coreto feio, eventual abrigo para moradores de rua.

Pouco ou nada viajei de trem, mas me lembro de meus avós se preparando para visitar terras longínquas: Bom Jardim, Cordeiro, Cantagalo. Eles partiam com o farnel completo: pão com carne assada (ah, que saudades da pobreza de antigamente!), café com leite (que então se levava numa jeitosa garrafinha de Biotônico Fontoura) e laranja para a sobremesa. E lá iam, deixando em nós, crianças, a impressão de que percorreriam rios e mares, mundos e fundos, até alcançarem o destino, já sem provisões para mais um passo, como tem acontecido desde sempre aos grandes aventureiros. Na verdade, hoje sei com tristeza, iam logo ali, visitar uma filha que morava em Sumidouro.

O que fez o velho trem apitar no fundo da minha memória e vir subindo a serra até alcançar a estação central do meu pensamento foi uma velha colcha. A mulher estava lavando o parapeito (palavra perfeita: não deixa nenhuma dúvida sobre a finalidade do objeto nomeado), a água escorria e pingava na calçada embaixo. Não era nada difícil que algum passante distraído levasse um banho fora de hora. Com a santa intenção de evitar acontecimento tão desagradável e certamente para não ouvir os palavrões que viriam lá da rua, a mulher colocou uma colcha pendurada de tal maneira que, antes de entrar no chuveiro público, o cidadão batia na colcha e, assim alertado, fazia uma curva e escapava do banho.

Com o trem ocorria coisa semelhante. A estação ficava onde hoje está instalada a Polícia Militar. Um pouco antes, ficava a ponte, adornada por um arco de ferro. Não sei com que finalidade, mas um funcionário vinha sempre em cima do trem. Talvez fosse mera imitação dos caubóis do cinema americano, que viviam arrumando briga com os bandidos sobre os vagões em movimento. Está visto que só os bandidos caiam do trem, desnecessária era, pois, toda a roeção de unhas da plateia. Mas ferroviário brasileiro não é mocinho americano (desconfio que nem mesmo os mocinhos americanos o são) e esse que vinha empoleirado no alto do trem corria o sério risco de dar com a cabeça no arco da ponte. Posso garantir que seria uma testada e tanto, um estrago de bom tamanho na aparência do rapaz. Para que tal tragédia não ocorresse, a poucos metros da ponte ficavam vários pedaços de corda, pendurados numa trave que, presa a um poste, se estendia sobre os trilhos. Lá vinha o caubói ferroviário e, ao passar por ali, dava com a cara nas cordas. Imediatamente se abaixava e só voltava a se erguer quando o trem tivesse atravessado a ponte.

Muitas vezes vi o trem se aproximando e fiquei na expectativa de que o sujeito não reparasse nas cordas, ou que por alguma razão elas não estivessem ali. Não creio que eu desejasse que o infeliz se arrebentasse contra a ponte de ferro: naquela época eu não era uma peste assim tão grande, depois é que piorei. Na verdade, eu estava numa idade em que nem querendo a gente consegue ser mau. Provavelmente eu só esperava vê-lo pular, como faziam os caubóis nos faroestes.

Mas a principal lição das cordas sobre os trilhos é o que a gente precisa aprender a hora de se abaixar, para não quebrar a cara. Às vezes a vida põe uma cortina de cordas, ou ao menos uma colcha velha diante de nós e a gente finge que não vê. O ferroviário sempre se curvava diante da ponte e eu teria me poupado de muita cabeçada na vida se tivesse aprendido com ele essa lição de sabedoria e humildade.

 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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