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Menina de rua (mas não tanto)
Não, não quero adotá-la. Se bem que, pensando bem...
Pede para falar comigo, vou pessoalmente ver quem é a tal Edilberta. Até que é bonitinha. Não é que eu, vinicianamente, ache que beleza é fundamental. Mas isso é a primeira coisa que a gente repara numa mulher, não me venha agora você sustentar o contrário, só porque sua patroa está presente. Convido a visitante a sentar-se e, a bem da verdade, essa é uma boa ação que pratico também com as mais feias e mesmo com os marmanjos. Não é sem motivo que certa senhora me considera “um cavalheiro de antigamente”. Pois bem, disponho-me a ouvir Edilberta, que deseja me entrevistar, visto que ela, chegada ontem de Fortaleza, já foi informada de que sou "uma pessoa muito considerada na cidade", vejam vocês, eu mesmo desconhecia esse fato glorioso a meu respeito.
As perguntas são sobre as miudezas habituais: nome, idade, profissão. Ao item “sexo” quase me furtei a responder, porque até então eu achava que, só de olhar para mim, a pessoa já podia concluir, sem precisar de confirmação de minha parte. Enfim, “cavalheiro de antigamente”, vou respondendo na melhor forma da lei, como lá dizem nossos doutos advogados. Mas a entrevista vai ficando embaraçosa, à medida que Edilberta quer saber que nota eu daria à saúde no município, à educação no estado, à honestidade no país.
Minha avó me ensinou que peixe morre pela boca. Meu avô, talvez achando que provérbio demais também mata, ficava calado. Não chego a ser tão prudente quanto meu avô, mas também não saio por aí mordendo qualquer isca, só porque a pescadora é bonitinha. Levado por tão alta sapiência, eu é que começo a questionar a entrevistadora. E ela me conta uma história de cortar o coração das estátuas se é que estátuas têm coração. De família paupérrima em Fortaleza, escapou das drogas e da prostituição infantil (essa notável atração turística nacional) graças às senhoras caridosas que, naquela cidade, recolhem e acolhem meninas de rua. Durante alguns anos morou com as ditas senhoras, mas que, aos dezoito, precisou abrir vaga para outra deserdada que chegava.
Voltando ao interrogatório, Edilberta quer saber quem eu acho que é culpado por haver crianças de rua: a família, a sociedade ou o governo. A questão me parece muito complexa para ser reduzida a um x entre três parênteses possíveis. A caneta espera ansiosa e, já que demoro tanto, a própria entrevistadora me socorre, isentando a família. Ainda assim, preciso decidir entre o governo e a sociedade (Edilberta e a caneta me olhando, concentradas). Mas, tão logo eu me decido por "ambos", a moça quer saber se eu adotaria uma menina de rua. Depois de rápidas reflexões religiosas, morais e filosóficas, respondo que sim. Pra quê !!!
- O senhor me adotaria?
Edilberta me pergunta, me olhando nos olhos. Pois ora, ora! Aqui está essa moça, até bonitinha, a me propor essa questão assaz embaraçosa. Não fosse eu o já duas vezes citado “cavalheiro de antigamente”, teria dito alguma gracinha de duplo sentido. No entanto, limitei-me a perguntar (e um São Francisco que estava na moldura atrás de mim é testemunha) o que significava aquele “o senhor me adotaria?”
Pois bem, se vocês pensaram mal de Edilberta, estão enganados e terão que um dia responder, diante do próprio São Francisco, por esse mal pensamento. Porque, o que a moça tem a oferecer é, nada mais, nada menos do que “uma importantíssima obra cultural”, que vem a ser uma penca de dicionários ilustrados, receitas culinárias e as obras completas de José de Alencar. Adotar Edilberta significa comprar algumas dessas preciosidades, que “uma pessoa conceituada como o senhor não pode deixar de ter em sua casa”.
Pobre Edilberta! Lá se foi o pouco encanto que nossa conversa estava me proporcionando. Então, era apenas para me vender livros! Francamente, tem coisas que chateiam até um cavalheiro, mesmo os de antigamente. Uma delas é vir com essa conversa de menina de rua, e depois querer nos empurrar José de Alencar e livros de culinária.
Delicadamente, aconselho Edilberta a ir bater em outra porta. Não, não quero adotá-la.
Se bem que, pensando bem...
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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