Colunas
Malacologia
A inteligência humana ainda não descobriu a cura da chatice
Dizem que chato é o sujeito a quem você pergunta como vai e ele começa a contar. E há muita gente chata no mundo, eu mesmo convivo com várias e provavelmente sou uma delas. Conheço uma pessoa que tem a particularidade de falar se encostando no interlocutor. Sempre que converso com ela, vou andando para trás, à medida que ela vai dando passinhos à frente. Outro dia recuei tanto que acabei encostado na mureta da varanda. Estávamos no 5º andar. Como a alternativa era o suicídio, fui obrigado a participar de uma conversa cara a cara, no sentido literal da expressão.
Em todo caso, esse tipo de chato ainda é menos grave do que outro, o que fala dando socos, tapas e empurrões no ouvinte, do que resulta que, após conversar com ele, a vítima está cheia de hematomas. Um conhecido meu chegou a casa com uma escandalosa marca roxa no peito. Até hoje está tentando convencer a esposa de que adquiriu aquela mancha simplesmente conversando com um colega de escritório.
De fato, é uma explicação surpreendente. Paula Nei, boêmio carioca, famoso por suas tiradas sarcásticas, saiu-se uma vez com uma dessas. Tinha ele um desafeto de quem vivia falando mal. Um dia tendo bebido demais, mergulhou numa poça de lama e assim explicou aos amigos a sujeira em que se encontrava: “Encontrei Fulano e cai-lhe na alma”. É de Paula Nei a história de que ia aos consultórios porque os médicos precisavam viver, depois encomendava os remédios porque os farmacêuticos precisavam viver e finalmente jogava os remédios fora porque ele também precisava viver.
Ah, tem todo tipo de chatos, também conhecidos como malas sem alça, ou tão-somente por malas. Os que escrevem crônicas sem graça como esta; os que telefonam na hora do almoço para a casa da gente e logo esclarecem: “Espero que você não esteja almoçando”, os que aproveitam que é feriado para tocar a campainha, no domingo, às sete da manhã, e ainda perguntam: “Te acordei?” E os que tentam salvar nossas almas à força, tarefas que costumam iniciar com a pergunta: “O senhor gostaria que Jesus entrasse em sua vida?”, milagre que alcançarão se os deixarmos entrar em nossa sala. E os que bebem um ou dois uísques e começam a confessar a admiração e a estima que sentem por nós, tentando provar isso com abraços e beijos lacrimosos. Sei de um chato dessa linhagem que até levou uns tapas quando resolveu expressar os nobres sentimentos que nutria pela esposa de um amigo.
Tem o chato que puxa conversa no ônibus com o passageiro ao lado, ainda que este esteja lendo ou dormindo. O que nunca te viu e te trata com a intimidade dos velhos companheiros. O que aluga os ouvidos alheios para contar a pessoa maravilhosa que é, neste mundo que não o compreende. O chato é um bom sujeito, mas está sempre a um passo da falta de educação. E nem vale a pena falar dos mal-educados de fato: pessoas que fumam em lugares fechados, que falam alto em público, que ligam o som do carro numa altura que toda a rua é condenada a ouvir, e por aí vai.
Toda essa gente me veio à cabeça quando recebi convite para participar de um curso de malacologia. Até me entusiasmei, porque supus que malacologia fosse a ciência que estudava os malas. Eu bem que sacrificaria dois finais de semana para me livrar um pouco da minha própria chatice e para aprender a lidar com a dos outros. Malacologia! Palavra perfeita: estudo dos malas!
No entanto, tive a prudência de consultar o dicionário para saber se eu estava interpretando corretamente o termo. Lamento informar aos leitores que, infelizmente, a inteligência humana ainda não descobriu a cura da chatice. A chatice será talvez a última praga a ser extinta da face da Terra. E, para os que conseguiram ler esta crônica até aqui, para depois não dizerem que nada aproveitaram dessa leitura, acrescento a informação cultural de que a palavra malacologia significa “estudo dos moluscos”.
Achei que devia ser coisa muito chata e não fui.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário