Colunas
Livros, leitores e leituras
A moça era tão estranha que - comentava-se em todo o bairro - gostava de estudar
Já pensei até em publicar um livro contando as besteiras que fiz ao longo de minha carreira docente. Desisti ao calcular o tamanho e o peso que o volume ia ter. Atualmente vivo pregando contra pecados pedagógicos, na esperança de com isso expiar meus erros passados.
Estou convencido de que os professores têm lugar quase garantido no paraíso, graças não aos bons alunos, que esses, se vão para o céu, vão sozinhos. Graças, na verdade, àquelas pestes que transformam a sala de aula numa prova de resistência física e psicológica para seus mestres. Enfrentá-los é cumprir, ainda em vida, uma temporada no purgatório.
São esses que nos ajudam a pagar nossos pecados aqui na Terra mesmo e, dessa forma, abrem para nós as portas do céu. Visto que não me faltaram alunos de ambas as espécies, acredito merecer e espero alcançar lá em cima um lugarzinho onde possa me acomodar por toda a eternidade.
Conto especialmente com os votos daqueles para os quais eventualmente eu tenha sido de alguma utilidade, ainda que bem pequena. Por exemplo, fingindo não ter visto que ele escreveu "ezistência", o que lhe permitiu tirar 60 e não 59. Além do mais, existir ou ezistir, que cada um o faça e escreva como melhor lhe parecer.
Eu juro que tinha boa intenção quando insistia que a garotada lesse os livros que eu achava importantes, mas de boas intenções o inferno está cheio, como sabe qualquer um que já tenha passado por lá. Custei a compreender que o hábito de ler não pode ser imposto, quando muito podemos mostrar nossa própria paixão pela leitura e, assim, quem sabe, despertar em alguém o leitor que dorme em todas as pessoas.
É o que acabo de ver defendido no livro Como um romance, de Daniel Pennac. Confirmando uma frase do autor ("aquilo que lemos de mais belo deve-se, quase sempre, a uma pessoa querida"), este me foi emprestado por uma colega de minha especial amizade.
E, embora eu me considere o único brasileiro vivo que devolve os livros que apanha emprestado, Simone Figueiró se arriscou muito, pois, segundo Pennac, "o que era do outro sob os olhos dele torna-se meu enquanto meus olhos o devoram e, palavra, se gostei do que li, sinto certa dificuldade em devolvê-lo".
Há pelos menos dez anos emprestei uma antologia de contos a um amigo. Ainda que ele se limitasse a meia página por dia, já teria feito a leitura pelo menos umas 50 vezes. Certa vez, ao cobrar-lhe a devolução da obra, ouvi dele esta resposta sincera e descarada: "Não devolvi, mas não é por esquecimento, não. É mau-caratismo mesmo. É que eu gostei muito dos contos".
Com leveza e profundidade, Como um romance mostra que a leitura só tem sentido quando feita de forma espontânea, pessoal e gratuita. Ou seja, não pode ser imposta, ainda que pelas formas mais sutis e com o mais santo dos propósitos. Quer ler Fiódor Mokháilovich Dostoiésvski ? Ótimo. Prefere a revista Caras? Divirta-se. Também só vale a pena se feita do jeito particular de cada leitor, na hora que ele quiser, onde ele escolher, pulando páginas ou relendo duas, três vezes, se achar algo que lhe desperte especial interesse.
Finalmente, ninguém deve ler para dar conta do "sentido" da obra, da intenção do autor ou do que quer que seja que outros esperem da sua leitura. Enfim, Pennac nos adverte de que "o verbo ler não suporta o imperativo".
O que me lembra de que, em criança, tive uma vizinha acusada de ser grande leitora. A moça era tão estranha que - comentava-se em todo o bairro - gostava de estudar. Para nós, meninos, isso era coisa inacreditável, já que as horas de colégio nos privavam das principais delícias da vida, dentre as quais avultava disputar peladas nos terrenos baldios da redondeza.
Sim, posso dizer dos estudos de então o que o próprio Pennac diz do hábito da leitura: "O tempo para ler é sempre um tempo roubado. (Tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o tempo para amar)". Roubado de quê? Nos meus tempos de moleque, roubado à vadiagem a que eu queria dedicar-me para sempre, projeto logo desfeito pela vida, que, sendo mãe, tem lá o seu lado madrasta.
Pois bem, essa jovem não era obrigada a ler, e seus pais e amigos até viviam a adverti-la de que tanta leitura podia prejudicar-lhe o juízo. Portanto, não sei se foi culpa dos livros ou se do muito que lhe falavam para ir cuidar de outras coisas (por exemplo: namorar). O fato é que a moça um dia desvairou de correr gente para apreciar. Uma velha senhora, ao vê-la assim tresloucada, comentou, aliviada: "Bem fiz eu, que nunca passei do bê-a-bá!"
Foi um caso exemplar, que, no entanto, não me serviu de exemplo. É possível até que eu tenha sido empurrado para os livros pela curiosidade de entender como é que as letras podiam enlouquecer uma pessoa.
Hoje, não digo que eu seja mentalmente equilibrado, porque a primeira coisa que todo maluco diz é: "Eu não sou maluco, não!" Mas creio que meus parafusos soltos estão dentro da média da população em geral. E, se às vezes me preocupava ficar meio fora do mundo, agora encontrei consolo num pensamento de Pennac, com o qual fecho esta crônica (ou o que quer que isto pareça): "Assim, ele descobriu a verdade paradoxal da leitura que é nos abstrair do mundo para lhe emprestar sentido".
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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