Informalidade

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Lá sabia eu o que era CV! Para mim, podia ser nome de xarope ou de pastilha para a garganta

Estava eu posto em sossego, quando vieram me pedir para dar um recado a um alto servidor da Procuradoria Geral da República em nossa cidade. Acontece que o ilustre cidadão é meu amigo, o que me permite tratá-lo simplesmente por Robertinho. Não sou em geral dado a intimidades excessivas e com mais frequência uso "senhor” do que "você”. Nem todo mundo é assim. Ontem mesmo recebi no trabalho uma senhora a quem nunca tinha visto mais gorda nem mais magra, em resumo, a quem nunca tinha visto antes e, durante os cinco minutos que durou a nossa conversa, ela me chamou três vezes de meu amor.

Bem que desde criança eu me desconfiava capaz de despertar esses amores súbitos nas mulheres, mas confesso que mesmo assim fiquei surpreso por ter provocado uma paixão tão repentina. "Meu amor”!... Tudo bem, outras senhoras já me chamaram de coisa pior.

Então, sendo o caso de Procuradoria, procurei. Lá chegando, encontro na entrada um guarda muito solene, uniforme, arma na cintura e aquele ar de quem tem consciência de suas altas atribuições na defesa dos bens da República. Diante de figura tão conspícua (não me ocorre nenhuma palavra mais simples para descrevê-lo), mais ainda se acentuou em mim a tendência à solenidade no trato com as pessoas. Além do que, não ficava nada bem referir-me a uma autoridade pelo prenome, e menos ainda usando o diminutivo.

Assim pensando, declinei o título e o nome inteiros ao perguntar se o doutor estava presente. O guarda apoiou a mão no revólver, virou a cabeça para dentro da repartição e gritou:

 — Ô, Robertinho, chega aí! Tão te procurando aqui!

Essa experiência me levou a repensar meu comportamento. No Brasil, até o Papa é tratado como velho conhecido e aquilo que certo presidente chamava de liturgia do cargo é bem pouco levado a sério. Você entra no restaurante, e a primeira coisa que o garçom faz é colocar a mão no seu ombro: "Fala, comandante! Tenho uma mesinha especial guardada para o amigo”, e leva você para aquela mesa lá nos fundos, perto do banheiro.

Outro dia eu esperava minha vez para ser atendido pelo médico, lendo meu gibizinho, quando uma senhora chegou para marcar consulta. Diante do povão ali reunido, a atendente quis saber: "Uquequié que a senhora tem?” (O povão todo levantou as orelhas e até eu parei de ler o gibi). Ora, nem tudo que se tem quando se procura o médico é para ser falado no Jornal Nacional.

Aliás, na minha infância trabalhei numa farmácia, na qual tinha um colega que não primava pela prudência. Um dia, apareceu lá uma freguesa, magra como só uma fome de muitos meses ou uma doença muito grave podiam explicar. Fosse qual fosse a razão, não cabia ao balconista fazer este desastrado comentário: "Pela dosagem que o médico receitou, a senhora tá muito mal!” Resultado: no dia seguinte, o médico em pessoa compareceu à farmácia e repreendeu o rapaz com uma delicadeza que o deixou mais magro do que a mulher do dia anterior.

Contudo, nunca o critiquei. Naqueles tempos em que até a palavra sexo era palavrão, fui atender um senhor que, ao pé do ouvido, me perguntou: "Vocês tem CV?”  Lá sabia eu o que era CV! Para mim, podia ser nome de xarope ou de pastilha para a garganta. Pois CV significava Camisa de Vênus, nome arcaico do que hoje se chama preservativo masculino ou, menos formalmente, camisinha. Na minha inocência de menino, ampliei a pergunta para a farmácia inteira ouvir: "Este senhor está pedindo CV. A gente tem?” 

Hoje, quando garotas mal saídas da infância expõem sua vida íntima na internet, minha falta não seria tão grave. Mas outros eram os costumes e eu quase perdi o emprego. Tudo muda, e sábio é quem procura se adaptar. Mas publicamente chamar uma autoridade de Robertinho... Francamente!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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