A imprecisão da linguagem

quarta-feira, 01 de novembro de 2017

É a poesia juntando a imprecisão da linguagem à imprecisão da vida.

Eu já contei a história verídica (com alguma invençãozinha, que essa coluna não é ata de reunião, nem bula de remédio) da professora que levou seus alunos para conhecerem a biblioteca do colégio, que ficava no segundo andar. Na volta, ao chegar à escada, recomendou que as crianças descessem se apoiando no pequeno corrimão de madeira. “Segura o pauzinho”, recomendou ela. Tanto é fato que se expressou muito mal que, quando olhou para trás, viu que todos os meninos estavam com as mãos entre as pernas, segurando o dito-cujo.

Desculpem começar essa crônica de maneira inocente-pornográfica, mas foi para mostrar o quanto a linguagem humana é imprecisa. Podia ter começado com um exemplo mais nobre, como a famosa citação feita por Fernando Pessoa: “Navegar é preciso/viver não é preciso”. Normalmente se entende que isso significa que, para o povo português, navegar era mais importante do que viver. Mas houve quem a interpretasse de outra maneira: navegar é ciência exata, precisão, enquanto que viver é incerteza, insegurança, imprecisão. É a poesia juntando a imprecisão da linguagem à imprecisão da vida.

Qual o jeito de lidar com isso? Vejam a palavra jeito, que, segundo Rubem Braga, era mais jeitosa quando se escrevia com g, como muita gente continua fazendo até hoje. Dar um jeito no cabelo é uma coisa, arrumar um jeito de enriquecer é outra, ambas muito diferentes de ter um jeito esquisito, e por aí vai. Um dia, pediram às crianças do jardim de infância que desenhassem expressões como “pé de vento” e “dobrar uma esquina”. As crianças até acharam um jeito, mas eu não acharia, e acho provável que você também não (desconfio que acabo de usar o verbo achar com dois sentidos diferentes).

Não dá para levar as palavras ao pé da letra e, aliás, ao pé da letra já é, em si mesma, uma expressão sem pé nem cabeça, e esta também... Chega! Só por milagre é que às vezes conseguimos entender as maluquices que falamos. O que significa, por exemplo, “tirar o pai da forca”? Pode ser até que o cara mereça, mas qualquer filho, por pior que seja, tentará evitar esse desagradável desfecho para a vida paterna. Consta que foi justamente o que se deu com Santo Antônio, que estava a fazer (ele era português) um sermão quando vieram lhe dizer que seu pai ia ser enforcado. Sem sair de onde estava, Antônio fez o milagre de ir até o local do julgamento advogar em favor do pai, conseguindo livrá-lo da corda que o aguardava. Ou seja, teve que agir rapidinho, daí que a expressão até hoje signifique estar apressado, ou coisa semelhante.

E tem aquelas coisas que falamos exatamente para não dizer nada. Você pergunta no ambulatório quando é que o médico vai começar a atender. Se o funcionário do guichê responder com um decisivo “já, já”, fique sabendo que vai demorar, e muito. Se ele disser que “logo, logo”, aí mesmo é que você está perdido! E uma dívida que o sujeito promete pagar “no mês que vem”? Ora, tirando o atual e os passados, todos os demais meses são “que vem”, e a espera pode durar séculos. No restaurante, pergunta-se ao garçon se a comida ainda demora. Ele responde que “está saindo”, ou seja: “vai roendo uma torradinha, que o pessoal da cozinha tá atolado até o pescoço”.

Enfim, não dá para confiar no que as pessoas dizem. Exceto, claro, os nossos políticos.  Quando um deles afirma que não esteve naquela reunião em que se dividiu a propina, pois estava em casa com a esposa e os filhos (ou com as esposas e o filho). Aí, sim, podemos acreditar, pois nossos políticos não são Santo Antônio, para estar em dois lugares ao mesmo tempo.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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