Homens e gatos

quarta-feira, 03 de outubro de 2018

Para eles, a vida é uma canseira só

Também os papéis, por numerosos que sejam, um dia acabam. Há na vida de todo burocrata um momento em que ele constata que não tem nada de importante ou de urgente para fazer. Momento em que atinge o dom de tornar-se perfeitamente inútil, de uma inutilidade santa, que não causa vergonha ou remorso. Nada a resolver, nada a decidir, nenhuma opinião a ser dada. Vagarosamente, a cabeça vai ficando tão vazia quanto a mesa, ambas limpas e serenas. Até Deus descansou no sétimo dia. E não falta quem ache que Ele podia ter parado no quinto dia, antes de criar o homem, a única de suas criaturas que até hoje Lhe dá trabalho, e que inventou para si mesmo problemas para resolver, formulários para preencher, contas para pagar.

O burocrata aproveita a bonança imprevista, vai até a janela, e o que vê? Outras pessoas desocupadas como ele? Um dos principais passatempos dos brasileiros é falar mal dos brasileiros. Cada um acha que, excetuando a si mesmo e a dois ou três amigos, todos os demais fazem parte de uma vasta quadrilha de malandros irrecuperáveis, que só pensam em sombra e água fresca e umas cervejinhas nos fins de semana.

No entanto, o que o burocrata descobre, ao olhar para a rua, é que ali na esquina o terreno está sendo preparado para que nele se erga um novo prédio. Já de saída antipatiza com o monstrengo a ser parido naquele local e que, tão logo levante o esqueleto, vai fechar-lhe o único vão por onde ainda é possível ver, de sua janela, um pedaço de montanha.

Escondidos pelos tapumes da obra, três peões trabalham, removendo pedras, abrindo buracos, carregando os restos mortais de uma casa que existiu naquele local. Não usam nessas tarefas modernos recursos tecnológicos. Nada de computadores americanos, robôs japoneses ou meros tratores nacionais. Os guindastes são seus músculos. Queimam suas próprias energias, gastam o mais barato dos combustíveis, consumindo a si mesmos. De suas mãos brotam enxadas, marretas e pás que, vistas das janelas do burocrata, mais parecem galhos exóticos de estranhas árvores em movimento.

Esses homens, essas máquinas, esses homens-máquinas, trabalham assim desde que pela primeira vez lhes entregaram um saco de cimento e eles conseguiram carregá-lo. Se lhes dissermos que no Brasil as pessoas trabalham menos do que nos países estrangeiros, que o operário brasileiro é um bon-vivant, eles vão achar que estamos brincando. Se conseguirmos convencê-los de que falamos a sério, eles resmungarão convictos, ainda que respeitosos: “Esses caras tão malucos!”

Porque, para eles, a vida é uma canseira só. Aos domingos, repousam fazendo biscates, ou entram nos mutirões que o poder público, generosamente, promove nos bairros pobres. Também vão para os campos de pelada, bebem cachaça, fazem cantoria, que ninguém é de ferro. E, se assim não fizessem, iam nos tirar o prazer de criticá-los por não terem juízo, nem interesse em subir na vida. “É por isso que essa gente não progride”, sentenciamos numa mistura bem dosada de desprezo e pena.

Mas, desviando os olhos, o burocrata vê quatro ou cinco gatos sobre o telhado vizinho à obra. Não os chama de vadios, porque considera isso pleonasmo mais do que vicioso. Quem já conheceu um gato de rua ao qual não se grudasse automaticamente o adjetivo vadio? Derramam-se ao sol, como se fossem de gelatina e chegam a assumir a forma ondeada das telhas.

No chão, os operários trabalham, ignorantes da fama de preguiçosos que, por serem brasileiros, já ao nascer adquiriram. Acima deles, os gatos descansam de nunca terem feito nada. No último andar, o burocrata observa as duas cenas. Meio operário, admira os homens que cumprem penosamente a condenação bíblica de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Meio gato, inveja a ociosidade dos felinos, que vivem de contemplar o trabalho alheio, e nem por isso têm crise de consciência.

O burocrata começa a abrir gavetas e a procurar o que fazer.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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