Gol anulado

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Deodésia custou a responder, mas depois confirmou: “O maior time do Brasil, ué!”

—  MengOOOOOO!

 Ela gritou quando a bola bateu no fundo das redes. Vitória rubro-negra, Vascão fora da final. Antes que o goleiro se levantasse, o cinto na minha mão descia, cantando Zap! Zap!, furioso. Riscos de sangue foram surgindo nas escuras costas de Deodésia, me fazendo lembrar uma antiga camisa do Flamengo, de listras horizontais, vermelhas e pretas. Aí mesmo é que a raiva cresceu e eu bati com mais força.

Desde criança minha vida tinha sido detestar o Flamengo. A torcida mais nojenta do Brasil. Qualquer vitoriazinha fazem uma algazarra, provocam os outros, arrumam briga e bebedeira. Fanáticos. Quando enfrenta time estrangeiro, o Brasil inteiro fica contra. Eu mesmo já gritei muito “Liverpool!” e “Boca Junior!” Só pra ver a urubuzada baixar a crista.

Nunca que uma flor igual a Deodésia ia ser Flamengo. Quando ela me confirmou que era vascaína, quase chorei. A gente já vinha num chamego grande, desde um baile na casa do Aurelino, primo dela e meu companheiro da Vasconçalo, a maior torcida organizada de São Gonçalo. Já no primeiro lance a gente se entendeu melhor que Pelé e Coutinho nos bons tempos. Fiz marcação cerrada em cima dela, não deixei ninguém entrar na área.  Até que combinamos: ir juntos a Cabo Frio, ver o Vascão golear a simpática equipe daquela cidade.

No ônibus o pessoal bebia e cantava. Um dos nossos até compôs um samba: “Ô mulher!/ Minha vida tem dois amor/ O Vasco entrando em campo feito raio/ e tu entrando em casa feito flor/ Ô mulher!” Achei lindo, parecia feito pra mim e Deodésia. Peguei na mão dela, olhei ela no fundo dos olhos e, só por perguntar, ainda perguntei: “Qual o teu time?” Deodésia custou a responder, acho que por causa da batucada em volta, mas depois confirmou: “O maior time do Brasil, ué!”

Dali a seis meses a mãe dela fez bolo e pastel, o pai comprou guaraná e cerveja. Casamos sem padre e sem papel assinado. Daí pra frente vivi, melhor que um almirante. Três anos de total felicidade vascaína!  Deodésia me prometia ficar torcendo e rezando pelo Vasco, mas não ia aos jogos comigo: “Fico muito nervosa”. Nas eleições, a gente combinava: “Estadual é o Dinamite, federal é o Eurico!” Quando o Flamengo jogava, durante noventa minutos ela roía as unhas. “Medo de uma vitória rubro-negra”, pensava eu.

Aí veio aquele jogo maldito, deu aquela zebra. Zico balançou as redes uma vez, ela deu um pulo da poltrona, mas se aquietou. Já no fim do jogo o Galinho de Quintino meteu outra, justiça seja feita: uma pintura. Aí Deodésia não se aguentou: “MengOOOOOO!” Quando a traidora parou de gritar e pular, eu já tinha entendido tudo: flamenguista! Puxei o cinto e bati, ela saiu correndo porta afora e nunca mais voltou.

... Até torcer pelo Vasco ficou meio sem graça. Nem tenho acompanhado a Vasconçalo. Mandei um recado pelo Aurelino: eu peço perdão, ela muda de time, a gente reconcilia. Resposta dela: Uma vez Flamengo, sempre Flamengo!

Urubus! Cambada de urubus!

*****

“Quando você gritou/ Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar/ Três anos vivendo juntos/ E eu sempre disse contente/ Minha preta é uma rainha/ Porque não teme o batente/ Se garante na cozinha/ E ainda é Vasco doente/ Daquele gol até hoje/ Meu rádio está desligado/ Como se irradiasse/ O silêncio do amor/ Terminado/ Eu aprendi que a alegria/ De quem está apaixonado/ É como a falsa euforia/De um gol anulado.”
(CD “Galos de Briga”, de João Bosco e Aldir Blanc. 1976.)

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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