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Gol anulado
“Quando você gritou/ Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar/ Três anos vivendo juntos/ E eu sempre disse contente/ Minha preta é uma rainha/ Porque não teme o batente/ Se garante na cozinha/ E ainda é Vasco doente/ Daquele gol até hoje/ Meu rádio está desligado/ Como se irradiasse/ O silêncio do amor/ Terminado/ Eu aprendi que a alegria/ De quem está apaixonado/ É como a falsa euforia/De um gol anulado.”
(João Bosco e Aldir Blanc)
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- MengOOOOOO!
Ela gritou quando a bola bateu no fundo das redes. Vitória rubro-negra, Vascão fora da final. Antes que o goleiro se levantasse, o cinto na minha mão descia, cantando zap! Zap!, furioso. Riscos de sangue foram surgindo nas costas escuras de Deodésia, me fazendo lembrar a odiosa camisa do Flamengo, de listras horizontais, vermelhas e pretas. Aí mesmo é que a raiva cresceu e eu bati com mais força.
Desde criança minha vida tinha sido detestar o Flamengo. A torcida mais nojenta do Brasil. Qualquer vitoriazinha, fazem uma algazarra, provocam os outros, arrumam briga e bebedeira. Fanáticos. Quando enfrenta time estrangeiro, o Brasil inteiro fica contra. Eu mesmo já gritei muito “Liverpool!” e “Boca Junior!” só pra ver a urubuzada baixar a crista.
Nunca que uma flor igual a Deodésia ia ser Flamengo. Quando ela me confirmou que era vascaína, quase chorei. A gente já vinha num chamego grande, desde um baile na casa do Aurelino, primo dela e meu companheiro da Vasconçalo, a maior torcida organizada de São Gonçalo. Já no primeiro lance a gente se entendeu melhor que Pelé e Coutinho nos bons tempos. Fiz marcação cerrada em cima dela, não deixei ninguém entrar na área. Até que combinamos: ir juntos a Cabo Frio, ver o Vascão golear a simpática equipe daquela cidade.
No ônibus o pessoal bebia e cantava. Um dos nossos até compôs um samba: “Ô mulher!/ Minha vida tem dois amor/ O Vasco entrando em campo feito raio/ e tu entrando em casa feito flor/ Ô mulher!” Achei lindo, parecia feito pra mim e Deodésia. Peguei na mão dela, olhei ela no fundo dos olhos e, só por perguntar, ainda perguntei: “Qual o teu time?” Deodésia custou a responder, acho que por causa da batucada em volta, mas depois confirmou: “O maior time do Brasil, ué!”
Dali a seis meses a mãe dela fez bolo e pastel, o pai comprou guaraná e cerveja. Casamos sem padre e sem papel assinado. Daí pra frente, vivi melhor que um almirante. Três anos de total felicidade vascaína! Deodésia me prometia ficar torcendo e rezando pelo Vasco, mas não ia aos jogos comigo: “Fico muito nervosa”. Nas eleições, a gente combinava: estadual é o Dinamite, federal é o Eurico! Quando o Flamengo jogava, durante noventa minutos ela roía as unhas. “Medo de uma vitória rubro-negra”, pensava eu.
Aí veio aquele jogo maldito, deu aquela zebra. Zico balançou as redes uma vez, ela deu um pulo da poltrona, mas se aquietou. Já no fim do jogo, o Galinho de Quintino meteu outra, justiça seja feita: uma pintura. Aí Deodésia não se aguentou: MengOOOOOO! Quando a traidora parou de gritar e pular, eu já tinha entendido tudo: flamenguista! Puxei o cinto e bati, ela saiu correndo porta afora e nunca mais voltou.
...Até torcer pelo Vasco ficou meio sem graça. Nem tenho acompanhado a Vasconçalo. Mandei um recado pelo Aurelino: eu peço perdão, ela muda de time, a gente reconcilia. Resposta dela: Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer!
Urubus! Cambada de urubus!
(Em memória do meu irmão Riveraldo, que na Primeira Divisão do Céu, onde agora é titular absoluto, continua torcendo pelo Vasco)
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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