Colunas
Eu, terrorista
Posso, sem medo de errar ou mentir, contar para meus filhos e netos que enfrentei o regime militar de peito aberto
Vocês me conhecem e sabem que eu não sou nenhum Osama Bin Laden. Por temperamento, preguiça e covardia, nunca fui dado a atividades terroristas. O máximo de violência que consigo fazer é ficar vermelho de raiva. Já na minha infância era um coração manso, incapaz de atirar pedra nos cachorros ou roubar bengala dos ceguinhos. Meus amigos costumavam pegar passarinhos em alçapões, iludindo os bichinhos com um punhado de alpiste ou canjiquinha. Depois, depenavam as pobres aves, faziam uma fogueira de gravetos, assavam e comiam as poucas carnes e ficavam roendo os magros ossos. Eu achava aquilo tudo uma crueldade e até hoje só gosto de passarinho voando. De preferência em dia de sol e céu azul.
Pois não é o que pensavam de mim as autoridades do regime militar. Outro dia falei em regime militar com uma senhora gordinha, que reagiu dizendo que já tinha tentado o “Regime do Dr. Atkinson”, o “Regime de alface com cenoura”, o “Regime de água morna com iogurte”, sem falar no famoso “Emagreça comendo à vontade”. “Será que esse tal Regime Militar emagrece mesmo?”, perguntou ela, esperançosa. Eu ia lhe explicar que não era bem disso que eu estava falando, mas acabei desistindo, e apenas comentei que o regime militar fazia as pessoas emagrecerem tanto que algumas até desapareciam.
O fato é que acaba de chegar às minhas mãos cópia de um documento do Serviço Regional de Investigações Especiais do falecido Dops. Em atenção aos mais jovens, explico que Dops significava Departamento de Ordem Pública e Social, e tinha no regime militar (que emagreceu uns, mas engordou outros tantos) a função de bisbilhotar a vida dos inimigos do regime e eventualmente mandá-los para a prisão, de onde voltavam... ou não.
Creiam ou não creiam, lá estou eu, juntamente com outros inofensivos cidadãos, fichados por querermos abalar os alicerces da nacionalidade, ao nos reunirmos para indicar um nome para a direção do colégio em que trabalhávamos. Essa ação, que na época julguei desprovida de qualquer heroísmo, vejo-a agora com outros olhos. Posso, sem medo de errar ou mentir, contar para meus filhos e netos que enfrentei o regime militar de peito aberto. “Coragem nunca me faltou”, direi a eles. “Os canhões e as baionetas nunca me calaram”.
Porque, meus senhores, tudo é a maneira como se conta. Ainda outro dia li sobre uma pesquisadora americana que, investigando sua árvore genealógica, descobriu que um de seus antepassados tinha sido ladrão de cavalos e assaltante de trem no velho oeste. Preso, cumpriu pena. Solto, voltou a roubar trens e cavalos. Até o dia em que puseram as mãos nele e o enforcaram, para grande alegria do povo.
Ela então mandou perguntar a um senador, também descendente daquele honrado cidadão, se ele sabia alguma coisa sobre seu antepassado. Prudentemente, no entanto, não revelou o que já tinha descoberto.
O senador respondeu, dizendo que o velho parente tinha sido um homem ligado a negócios com cavalos e que também se dedicara a empreendimentos ferroviários. Que durante algum tempo estivera trabalhando num órgão do governo, do qual se afastara para novamente dedicar-se ao ramo dos transportes. E, por fim, que seu sepultamento tinha contado com grande acompanhamento popular, constituindo-se num verdadeiro acontecimento cívico na cidade onde falecera.
Ambos disseram a mesma coisa, só que por outras palavras. Tudo é a maneira como se conta. Eu me achava um pacífico professor, o Dops suspeitava que eu fosse um agitador. Talvez ambos tivessem razão.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário