Eu não conheço esse homem

quarta-feira, 28 de março de 2018

“De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura que diz: Ele deve ressuscitar dos mortos”. (Jo 20, 9)

Eis aí a Semana Santa, com sua imensa carga de mistério e chocolate, diante de um mundo mais inclinado ao chocolate do que ao mistério, mais para o alegre coelhinho que, desnaturado, oferece ovos, do que para o Crucificado que anuncia o pão eterno.

“Não confie em ninguém com mais de trinta anos” era um slogan em moda pouco tempo atrás. Confiaremos, então, nesse homem de trinta e três, que há mais vinte séculos nos cerca por todos os lados e não desiste de nós, por mais que o desprezemos? E que, vendo o quanto fugimos d’Ele, fica em nós, como uma ausência que dói e incomoda? Não conheço esse homem de quem falais, esconjurava Pedro, o mesmo Pedro que Ele pescara às margens do Tiberíades e a quem transformaria em pedra. Quanto mais nós, não de pedra, mas de pó, não haveríamos de negá-lo?

O mundo, todo o mundo, todo mundo, nossa vida é apenas repetir a frase, não apenas três vezes, mas sempre e ainda que o galo cante sem cessar: Não conheço esse homem de quem falais. E, no entanto, Ele veio para se tornar conhecido, para prometer a vida definitiva, não o rascunho em que ora vivemos. E nos recusamos a crer no dia em que seremos passados a limpo, depois que o sofrimento tiver feito de nós um texto acabado, pronto para a leitura final.

Jesus dorme sonhando com outra humanidade, diz o poeta. Sim, porque esta é bem a mesma que O trocou por Barrabás e agora O troca por um cargo, por um carro, por um nada: uma dura palavra, uma ofensa sem motivo, uma inveja antiga. É bem a mesma que ao sol atirava pedras em Madalena e a frequentava nas sombras da noite. O mesmo é o Calvário onde morrem os que adoecem e não têm hospital, os que querem trabalhar e não têm emprego, os que são presos e não têm documentos.

Não se chamava “Jesus” o primeiro navio inglês que foi buscar negros na África? E não são cristãos os que exterminam índios e roubam suas terras? E cristãos se dizem os que, do alto de seus palácios e de seus poderes, olham tudo isso e lavam as mãos. E cristãos nos dizemos nós, plateia que às vezes aplaude, ou, quando muito, silencia diante desse espetáculo amargo.

Há uma cruz nos gabinetes onde se entra remediado e de onde se sai rico e sem remédio: há uma cruz nas celas onde se torturam os que pretendiam rezar por outro catecismo político; há uma cruz nas antessalas onde se espera o médico que nos cure a morte próxima e a dor presente, mas o médico está tratando do resfriado da madame e não pode vir agora. Eu não acredito em bruxas — dizem os espanhóis — mas que existem, existem. Nós, ao contrário, poderíamos dizer, nesta semana que queríamos santa e não ousamos impedir que seja apenas pecadora: Eu acredito em Deus, mas que ele exista, isso não!

Mas há também uma cruz em todas as consciências. E por mais cegos que estejamos, sabemos que ela nos olha. Esperançosa, talvez. E sabemos também que, por baixo de todo esse sofrimento, e de toda essa negação, muitos estão, como os Reis Magos, fiando-se na estrela que leva ao Menino. E muitos que ainda não descobriram a estrela pressentem a sua luz e a procuram. E, se tantas vezes entram por atalhos, terminam por achar caminho e segui-lo. Há quem mate e quem cure e não raro quem agora fere é o mesmo que cicatriza adiante.

Páscoa. Passagem. Passaremos nessa dura prova? Mais um domingo. Porém, o domingo em que O procuraram no túmulo e o túmulo estava vazio. Que do alto de Sua cruz Ele nos olhe e possa ver algo parecido não com a humanidade que o matou, mas com a humanidade pela qual Ele morreu.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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