Erros e variantes

quarta-feira, 07 de novembro de 2018

Mais vale uma boa rima do que uma correção ruim

Começo a ler um livro de crônicas e, logo na primeira delas, me deparo com o que antigamente era considerado erro gramatical, e que atualmente chamamos de variante linguística. Como pouca gente sabe o que seja isso, ninguém fica ofendido se lhe dissermos que usou uma variante, ao invés de dizer que cometeu um erro. É sempre melhor ser chamado de distraído do que de ignorante. Mais ameno para quem ouve, mais cristão da parte de quem fala. E o fato é que, nessa história de dizer que os outros falam ou escrevem errado, vai muito de preconceito e zombaria, quando não da própria ignorância de quem aponta o dedo acusador (talvez nesse caso fosse mais correto dizer “a língua acusadora”).

Basta observar que, quanto mais alguém conhece os mistérios de um idioma, mais tolerante é com os desvios da norma culta. Eu, sendo detentor de vastíssima ignorância no assunto, procuro seguir o exemplo dos mais entendidos e, se ouço um “menas gente”, apenas recomendo falar “menos gente”, argumentando que “está assim nas gramáticas e, você sabe, com as gramáticas não adianta discutir”. Nunca me esqueço de quando colocaram no quadro de avisos da Sala dos Professores um cartaz com dois tropeções gramaticais. Um colega foi lá e, com sua furiosa caneta vermelha, assinalou escandalosamente tudo o que sua sapiência reprovava. Aprendi nesse dia a lição da diferença que existe entre corrigir para ajudar e corrigir para humilhar.

Não estou aqui para dizer que em linguagem tudo vale. Tudo tem seu momento, texto e contexto. É como diz o samba de Billy Blanco: “O que dá pra rir, dá pra chorar/ Questão só de hora e medida/Problema de hora e lugar/ Mas tudo são coisas da vida”. O que lembra a interessante história da composição “Fiz por você o que pude”, de Cartola. Nela, o autor de belezas como “O mundo é um moinho” e “As rosas não falam” escreveu os seguintes versos: “Eis que Jesus me premeia/ Surge um outro compositor/ Jovem de grande valor/ Com o mesmo sangue na veia”. 

Lá estava o autor feliz da vida com sua obra, quando vieram lhe dizer que ele havia tropeçado no verbo. Consta que Cartola ficou muito aborrecido e chegou a pensar em corrigir o “erro”. Mas, felizmente, a rima foi preservada. Se o ministro Jarbas Passarinho agiu mal ao mandar “às favas os escrúpulos de consciência”, ao assinar o Ato Institucional no 5, muito bem agiu Cartola ao mandar às favas os escrúpulos gramaticais e  gravar sua música com veia e premeia rimando. Mais vale uma boa rima do que uma correção ruim.

Mas, voltando à citada crônica, num livro em que predominou a norma culta, ainda que descontraída, aquele “arreia” no lugar de “arria” estava fora de hora e lugar. Mas não me escandalizei com o descuido da autora, e nem por isso deixei de ler o livro, com prazer, até a última página. E, para falar a verdade, me lembrei de ter cometido o mesmo deslize, ao escrever que “a mãe do menino arreou a cesta de compras”, ou coisa assim. E isso depois de mil vezes ter ensinado aos alunos que ninguém arreia cestas. Quando muito se arreiam cavalos, éguas e similares. Coisas assim nos fazem arriar nossas vaidades, ou mesmo reconhecer que bem merecemos um arreio de vez em quando, por causa das besteiras que falamos ou escrevemos. Não convém atirarmos pedras no telhado do vizinho, quando em nosso próprio telhado há tantas telhas de vidro.

Enfim, tanto vale a pena sermos tolerantes com as derrapadas alheias que uma delas me serviu de mote para escrever esta crônica. 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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