Colunas
Dois amores
Ainda que fosse casada, para o coração infantil não existe adultério.
Então, fomos visitar as primas. Meu pai tinha quatro irmãos e uma irmã, que mal se viam e pouco se falavam. Na verdade, só se encontravam nos velórios, quando um deles falecia. Aí, alguns apareciam lamentando a perda de um irmão tão querido, e outros não davam as caras nem mesmo nesses momentos solenes. Nossa tia morava em Olaria e nós, na Vila Nova. Naquela época, ir de um bairro ao outro era atravessar o Oceano Atlântico: uma viagem e tanto. De modo que nunca tínhamos ido lá, e essa parenta era para nós qualquer coisa assim distante, como são, nas histórias infantis, as fadas (sem querer elogiar) ou as bruxas (sem querer ofender). Existia, sem dúvida, mas não era real.
Então, fomos visitar as primas. Mudamos para Olaria e acabamos quase vizinhos daqueles parentes misteriosos. Não havendo mais o motivo ou a desculpa da distância, nossa mãe resolveu cumprir os deveres a que se via obrigada pela boa educação. Juntou a filharada e foi à casa da cunhada. Eu tinha uns nove anos, idade em que os homens facilmente se apaixonam. Aliás, em qualquer idade os homens facilmente se apaixonam, como prova a emocionante narrativa a seguir.
Há poucos dias, estava eu caminhando inocentemente quando se dirigiu a mim um senhor a quem eu algumas vezes tinha visto pelo bairro. O homem andava lá pela casa dos 70, o que não o impediu de me alcançar com passos rápidos e narrar sua história num só fôlego, enquanto apontava para uma jovem senhora que ia alguns passos à frente.
- Acredita que aquela moça me chamou de velho safado, só porque eu falei que ela era linda? Isso é ofensa? O pior é que eu acho ela linda demais, às vezes fico só olhando, mas hoje tomei coragem e falei: “Oi, linda!” Aí, ela ficou braba, e saiu toda de cara feia.
Como eu aproveitasse a oportunidade para exibir o ar de espanto que só uso em ocasiões muito especiais, ele continuou:
- Cara feia é modo de falar, que a cara dela é uma beleza só. Quando ela passa, meu coração faz um ratibum danado. Chego em casa e preciso até deitar pra me recuperar. E ela ainda fica ofendida!
Tive a má intenção de citar-lhe um verso do poema “Juca Mulato”, de Menotti Del Pichia: “Tu és qual um sapo a querer uma estrela”. A piedade cristã, no entanto, me fez traduzir a frase por algo mais ameno: “As mulheres são assim mesmo: ingratas”. Em todo caso, recomendei que ele parasse de olhar tanto para o objeto de sua paixão e de lhe dirigir galanteios, antes que ela concretizasse a promessa de lhe dar uns tapas, ou, pior ainda, que mandasse o marido, o namorado ou o irmão cumprir a tarefa.
Então, fomos conhecer as primas. Eu com nove anos, meu irmão próximo dos onze. Não me emocionou que a tia nos servisse café com leite e pão com manteiga. O que me emocionou, e a meu irmão não menos, foram as primas. Em nada diminuiu nossa paixão o fato de as duas serem já adultas, e uma delas até noiva, e ainda que fosse casada, para o coração infantil não existe adultério. De modo que saímos de lá decidindo quem namoraria quem. Depois de algumas negociações, fiquei com a loura e ele com a morena, divisão que muito me agradou, pois era justamente a loura que mais me abalara o coração.
O grande amor é o que não se realiza, e essa história também não teve final feliz. Numa próxima visita à casa dos tios, fomos recebidos com misteriosos sorrisos e olhares, sobretudo das duas primas. Quem teria dado com a língua nos dentes e revelado nosso segredo? Até hoje desconfio de mamãe, que Deus a tenha. Pois a loura, mal eu coloquei os pés na sala, apontou para mim, e candidamente perguntou: “Esse aqui é que é meu namorado?”
Meus amigos, se vocês já tiveram um amor secreto revelado assim em público hão de saber a vergonha que senti, aquela gente toda me olhando, com ar de quem diz: “Mas que moleque precoce!” E nem precoce eu era, tanto que só muito mais tarde, em uma única e definitiva vez na vida, me apaixonei novamente. Sim, dura foi a lição daquelas primas, a quem nunca mais vi, e que hoje devem estar por aí cheias de netos e bisnetos, perdida a beleza que talvez nunca tenham tido, senão aos olhos de um inocente menino de nove anos.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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