Diálogos e Diágolos

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Com o governo, é assim: ou você tem amizades nos mais altos escalões, ou se apega ao contínuo mais próximo

Já lhes falei sobre o dia em que eu ia passando por uma repartição pública e, na calçada, duas distintas senhoras trocavam palavrões e sopapos por causa de um cavalheiro que se dividia fraternalmente por duas camas. Ora, os triângulos amorosos costumam acabar em tragédia ou, no mínimo, nessas amáveis trocas de gentilezas. “Meia só pros pés”, bradava uma delas, enquanto a outra replicava: “Incompetente, não sabe segurar teu homem!” e por aí caminhava a simpática tertúlia literária. Nesse momento, um funcionário da dita repartição debruçou-se sobre a janela e proferiu uma frase elogiável, tanto pela forma quanto pelo conteúdo.

O tipo é conhecido, principalmente nos grandes órgãos do governo. Alguém me ensinou esta verdade eterna: às vezes é melhor você conhecer o contínuo do que o governador. Eu mesmo pude verificar isso quando tive um assunto pendente numa secretaria de governo. Depois de tentar resolver a questão por todos os canais competentes e, diante da incompetência deles, resolvi falar com o próprio secretário. No corredor que conduzia ao gabinete, havia uma pequena mesa e, nela, um contínuo. Eis o tipo. Era um desses negros que Nelson Rodrigues, ao falar do grande jogador Didi, chamava de “príncipe etíope”. Quem, senão um príncipe, daria tanta dignidade àquele terno roto? Quem, senão um príncipe, usaria com tanta distinção aquela unha comprida nos dedos mindinhos?

Naturalmente ele me respondeu que o secretário não estava. Eles nunca estão, ainda que estejam. Mas isso me abriu as portas, não do gabinete, mas dos ouvidos do contínuo, a quem contei a minha história. “O senhor espera aí um instantinho”, falou ele com gesto altivo. Foi lá dentro e voltou com o processo embaixo do braço. Com o governo, é assim: ou você tem amizades nos mais altos escalões, ou se apega ao contínuo mais próximo.

Verdade que passei horas decifrando o bilhete que ele me entregou, na boa intenção de orientar meus próximos passos nos paços da burocracia. Não tanto pela letra, cheia de arabescos, rendas e bordados. E sim pelo resto, que era uma síntese de todas as agressões já cometidas contra a gramática da Língua Portuguesa. Mas qual a importância disso, num país onde a mesma palavra pode ter várias pronúncias, como é o caso de pobrema, que aceita ainda as variantes pobema, probrema, probema e ploblem. Existe também a forma problema, de raríssimo uso na língua falada. É um problema, ou plobrema, vocês decidam. O Príncipe Etíope não precisava decidir nada, usava-as todas, alternadamente. Mas o que interessa é que ele resolveu o plobrema e seria agora a maior ingratidão se eu viesse a criticar sua deficiência gramatical, em vez de ressaltar sua eficiência funcional.

E a briga? Pois é, quase me esqueci dela. O barnabé dobrou-se sobre o parapeito e conclamou, em voz conciliadora: “Calma, meninas, vamos diagolar!”.

Eis aí uma verdade incontestável: dialogando, ou mesmo diagolando, a gente conseguiria resolver a maioria dos nossos problemas.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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