De cabo a rabo

quarta-feira, 17 de junho de 2015

E agora, de onde estou só pretendo sair para morar entre as nuvens

Quando pela primeira vez vi o mundo, o mundo era Vila Nova. Vagamente eu sabia que ao redor ficava a cidade de Nova Friburgo, o Estado do Rio de Janeiro, um certo país Brasil e além, muito além, o planeta Terra. Mas nada disso me interessava: o universo inteiro se resumia a Vila Nova.

A casa ficava ao pé do Morro da Cascata, onde dois inimigos perigosos se escondiam. O primeiro em nada me incomodava: os rapazes que estudavam no colégio da Fundação Getúlio Vargas, lá em cima. Pode ser que entre esses rapazes houvesse algum friburguense, mas o normal era que tivessem vindo de lugares perdidos mundo afora: São Paulo, Paraná, Minas Gerais... Sei lá o que mais... Quando desciam à cidade, sempre dava confusão, porque já naquela época santo de casa não fazia milagre e as moças locais desprezavam os plebeus nativos para namorar os invasores estrangeiros.

O outro perigo eram as águas que de lá despencavam; afinal o nome Cascata tinha sua razão de ser. O riachinho do bairro transbordava, entrava pelas janelas sem pedir licença e, se não matou ninguém, ao menos bons sustos andou dando. De modo que saí de Vila Nova tangido não pela ambição de ver o mundo, e sim pelas chuvas que me deixaram a ver navios, embora a água não fosse tanta que desse para passar navio. Mas tive que navegar por mares alheios - casas de avós e tios — até me mudar para Olaria.

Os mais antigos diziam então que do Paissandu a Olaria ainda há pouco era apenas uma senda escura e fria, ladeada de bambus. Imagino que por lá alguém fabricasse tijolos e telhas, daí o nome. Depois vinha a Fazenda do Cônego, e depois... não me parecia que pudesse existir mundo além daquele lugar tão distante. Muita gente se pergunta se há vida inteligente fora da Terra. Quando vejo os noticiários na televisão, eu me pergunto se por acaso há vida inteligente na Terra. E naquela época eu não acreditava que houvesse vida nem mesmo além do Cônego. Por isso contentava-me em vagar pelos cantos e recantos de Olaria e foi assim que vi o progresso chegar ao bairro, cobrindo de paralelepípedos as ruas que antes cobertas eram de poeira e lama.

Em Olaria fui caubói, detetive, astronauta, Homem Submarino e tudo mais que passasse pela tela do Cine São Clemente ou pelas páginas dos gibis. Mas a mão pesada da vida adulta acabou pesando sobre mim e, aliás, bem precocemente. De emprego em emprego, de casa em casa, acabei me mudando para o Centro, pulei para o Jardim Ouro Preto, passei pela Vilage e acabei me fixando no Suspiro, onde vou suspirando como Deus permite e reconhecendo que ele permite muito mais do que mereço.

O povo, que costuma inventar o inventado, transformou a expressão “de Cabo a Rabá” em “de cabo a rabo”. Cabo e Rabá, até um ignorantão como eu sabe disso, são duas cidades muito distantes uma da outra. A primeira fica na África; a segunda, na Bíblia. Uma pode ser localizada nos mapas; a outra, no Antigo Testamento. De cabo a rabo não significa nada, mas todo mundo entende o que significa. Não chego a dizer que percorri nossa cidade de cabo a rabo, mas bem que morei em lugares bem variados. E agora, de onde estou só pretendo sair para morar entre as nuvens, jogando conversa fora com os anjos e santos, que hão de me receber bem, visto que sempre acreditei neles e os tratei com o devido respeito.

TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.