Das Dores – uma adolescente brasileira

quarta-feira, 01 de maio de 2019

O que mais aquela menina podia querer na vida?

Era uma predestinada, tanto que lhe deram o nome de Maria das Dores.  Mas da maternidade já saiu reduzida a Das Dores. E Das Dores foi pela vida afora, vida curta, posto que antes dos quinze despencou da laje onde soltava pipa e morreu. A mãe, ao receber a notícia, montou na velha bicicleta e pedalou num fôlego só, do centro da cidade até a subida do morro. Mas só lhe restou chorar, no que foi furtivamente acompanhada pelo pai e por algumas vizinhas.

Os moleques do morro ficaram do lado de fora, com cara de curiosidade e espanto. Curiosidade porque nunca nenhum deles tinha morrido, embora com os adultos isso acontecesse de vez em quando. Morrer lhes parecia costume de gente velha. Espanto porque sempre tinham achado que nada de mau podia acontecer na vida de Das Dores ou, pelo menos, nada pior do que a própria vida de Das Dores.

Porque ela era a mais lépida, a que melhor subia e descia as ruas íngremes do bairro, e nem mesmo o garoto mais craque jogava futebol com igual ginga de corpo: estivesse no gol, buscando a bola aonde quer que ela fosse, ou no ataque, chutando tudo que aparecesse pela frente, inclusive a canela dos adversários. Madrugada ainda, era carinhosamente acordada pela mãe: “Levanta, pestinha, que já tô saindo pra trabalhar”.  Das Dores esfregava a cara com a água do balde, passava a mão no cabelo, antes amarfanhado e agora multiplicado em mil pontas que ameaçavam espetar o teto.

Depois, era tomar café com pão, acordar o irmãozinho e, indiferente aos protestos do pirralho, passar-lhe o pano na cara e levá-lo para a escola. Ela também estava matriculada, mas faltava muito. “Nunca se apronta e está sempre aprontando”, sentenciava uma das professoras.  Não sem razão, tinha recebido o apelido de Dona Repetência, em razão de há três anos bater pé firme na mesma série. Quando a criticavam por isso, respondia que estava se especializando. E daí lhe vinha tanto riso que lágrimas, não se sabe se de tristeza ou se de alegria, desciam pelo rosto empoeirado.

Após as aulas, voltava morro acima, puxando o irmão pelo braço. Almoçar o que fosse possível, e arrumar a casa. Todo dia a mãe lhe pedia que tirasse a poeira dos móveis, como se isso fosse possível. Das Dores sabia que a poeira era um inimigo invencível, ainda mais com a rua de chão mal batido do outro lado da porta. Então saía em direção ao campinho do Terreirão. Se não houvesse futebol, jogava bola de gude. Quando calminha, enchia os bolsos, mas às vezes, nervosa e briguenta, perdia tudo, soltava os mais feios palavrões.

As vizinhas se perguntavam o que mais aquela menina podia querer na vida. Tinha casa para morar, verdade que sem reboco e com telhas de amianto. Tinha pai, verdade que bebia um pouco e de vez em quando lhe dava uns cascudos. Tinha mãe, verdade que desaparecia de manhã e só reaparecia à noite. Tinha um irmãozinho, verdade que muito melequento. Enfim, tinha tudo que uma adolescente brasileira precisa para ser feliz.

Era época de pipa. O vento era favorável. Tudo na vida era favorável naquele dia, a própria pipa tinha sido ganha no jogo de palitinhos. Razões de sobra para Das Dores encostar a escada na parede e subir na laje. Aquela linha fina que saía de suas mãos fazia bailar uma mistura de cores lá perto das nuvens. Das Dores estava tão feliz! Recuou, recuou, recuou, até começar a voar. E voando continua, pois todo dia, ao sair de manhãzinha para o trabalho, a mãe olha para o céu e suspira: “Das Dores, minha filhinha!”

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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