Colunas
Conto de Natal
O menino anunciava a mercadoria quando, sem querer, olhou para dentro. Seus pés foram atrás dos olhos, enquanto sua voz gritava o refrão que o pai lhe ensinara: "Três por mil! Três por mil! O mais barato do Brasil!" À medida que o menino avançava, o grito ia se apagando, no fim era apenas um sopro. Quase na véspera de Natal, o vendedor tinha dificuldade para mostrar o brinquedo para a Mulher-Cheia-de-Embrulhos. Dava um pouco de corda, soltava com a mão direita e, pulando para o alto, pegava o avião com a esquerda, antes que ele disparasse por sobre a cabeça dos fregueses. Espantosamente, a Mulher-Cheia-de-Embrulhos fez que não com o dedo, como se tivesse achado pouca ou nenhuma graça. O vendedor foi dobrando a maravilha voadora, até deixá-la desse tamaninho, e a colocou de novo dentro da caixa. A caixa era um pouquinho menor do que a usada pelo menino para carregar seus chocolates.
O menino tinha 9 anos. No começo, vendia um chocolate e comia outro. Foi preciso o pai lhe dar muita pancada para que aprendesse. Agora, por mais vontade que sentisse, nem olhava para a caixa. Só quando o Moço-de-Barba-Comprida comprou três (por mil! o mais barato do Brasil!) e enfiou-os no bolso da surrada camisa do menino. Era possível que o Moço-de-Barba-Comprida tivesse adivinhado que o menino estava fazendo 9 anos naquele dia? Não sabia de onde vinha tanto chocolate. O pai saía de noite, sem dinheiro nenhum, e voltava de madrugada com várias caixas. Ao acordar, o menino já encontrava a sua parte separada, descia o morro, serpenteava o dia inteiro pelas ruas do centro, sempre gritando seu poderoso slogan: "três por mil! Três por mil! O mais barato do Brasil!”
Na hora da fome, pedia aos passantes que lhe pagassem um salgadinho. Quinhentos recusavam, um acabava se condoendo daquele menino tão pequeno, naquela cidade tão grande. Nunca pensava em brinquedo, não se lembrava de ter tido nenhum. Mas a mãe, inventadeira, fazia bolas de pano; de chuchu espetado com palitos saiam bois, gigantes e carrinhos. Era só e era o bastante. Até que o menino viu o aviãozinho. Se soubesse, nem tinha passado por ali, dava a volta, virava uma esquina, todas as ruas são a mesma rua. Roubar, então, Deus me livre! Nunca tinha passado por sua cabeça. Mas o aviãozinho! Escapulia da mão do vendedor como um passarinho brincalhão. Se deixassem, era capaz de sair porta afora e ir flutuando por cima do monstro de mil cabeças que o povo aglomerado formava. Fugiria daquelas ruas sujas e quentes, buscaria o mar, as nuvens, pousaria numa ilha onde o menino brincaria como menino, se lhe dessem a oportunidade de ser menino.Passou então a olhar a loja. Observou que o vendedor ia lá dentro apanhar coisas, demorava. O avião pousado sobre a pilha de caixas de avião. Em poucos dias decorou os labirintos da loja. Saberia andar de olhos fechados por entre bolas, bonecas e espingardas. Pernas e mais pernas. Vendedores agitados. E o Homem-Gordo-de-Óculos lá no fundo, vigiando tudo. Não, não dava para vigiar tudo ao mesmo tempo.No sábado, o movimento era demais. O pai já tinha dito: “Vê se hoje tu vende tudo, que amanhã é Natal”. O menino esvaziou a caixa, cortou o fundo com cuidado e foi para a loja. Entrou oferecendo chocolates, o Homem-Gordo-de-Óculos fez sinal para que saísse.O menino foi saindo, perdeu-se no meio daquele povo todo, apoiou a caixa na pilha de aviõezinhos, levantou a caixa com os dedos por baixo e foi embora.De repente, dois rapazes vinham correndo atrás dele: Pega ladrão! Pega ladrão! Chocolates voavam de seus bolsos, quatro ou cinco pessoas tentaram agarrá-lo, ficou com o pescoço arranhado e sujo de sangue. Também apanhou do pai, por causa dos chocolates perdidos. “Amanhã vou vender essa porcaria de brinquedo, pra recuperar o prejuízo!”Mas de madrugada, depois que Papai Noel já tinha passado pelas casas das pessoas ricas, o menino escapuliu do barraco e foi brincar no alto do morro.Tem gente que viu e até hoje jura que o menino não estava sozinho. Outro menino brincava com ele e os dois riram, pularam e correram atrás do aviãozinho até o dia 25 de dezembro amanhecer completamente.
24.12.94
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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