Colunas
Caso de caridade
Ele queria bater continência com o chapéu dos outros
Fazer caridade é uma coisa muita bonita, principalmente quando a caridade é feita com dinheiro alheio. Meu velho pai chamava a isso “bater continência com o chapéu dos outros”. A frase não tem muita lógica, mas que lógica tem, por exemplo, “correr atrás do prejuízo”? A gente corre é atrás do lucro, e se nunca o alcançamos é porque os banqueiros chegam sempre primeiro. O que me lembra a piada sobre dois banqueiros que, num dia de forte calor, passam em frente a um bar cheio de gente. Um deles convida: “Vamos tomar alguma coisa?” O outro responde, meio escandalizado: “Mas com todo mundo vendo?”
Minha mãe, mais poética do que o marido, dizia que “coração humano é terra que ninguém pisou”, e isso, sim, faz sentido. Às vezes uma frase não tem pé nem cabeça, não diz coisa nenhuma, mas com um pouquinho de imaginação e boa vontade todo mundo entende o que ela diz. Um pedreiro que conheci, lamentando as tantas coisas erradas que tinha visto na vida, declarou filosoficamente que “nós somos incelentes neste mundo”, com o que concordei plena e imediatamente, antes mesmo de atinar com ao menos um dos muitos significados possíveis da palavra “incelentes”.
Já gastei meia folha e nem entrei no assunto de hoje: a caridade, da qual me lembrei ao avistar na rua um conhecido cidadão de nossa terra. Conhecido porque rico, riqueza que conquistou com muito trabalho e competência e, à moda dele, caridade.
Estava eu trabalhando no meu cantinho, quando vêm me avisar que Manoel Timbiriçá deseja falar comigo. Inventei esse nome na esperança de que não exista nenhum Manoel Timbiriçá em nossa cidade, o que me poupa de futuros aborrecimentos com o verdadeiro personagem desta história.
Vamos ao caso, que resumirei reproduzindo as palavras dele:
- Professor, sou patrão e amigo do pai da menina Martinita, que terminou aqui a quarta série no ano passado. Ela é ótima aluna e adora vocês. Faz favor, leia essa redação que ela escreveu no fim do ano.
Faço leitura dinâmica de uma cartinha infantil, cheia de declarações de amor pelo colégio.
O visitante retoma a palavra:
- O sonho dela é continuar estudando com as colegas e as professoras que ela ama de paixão! O pai é meu funcionário exemplar há muitos anos, e eu vim aqui porque quero ajudá-lo a dar uma boa educação à filha. E também porque me toca o coração o amor da criança por este colégio. Então decidi: não é porque o pai não pode pagar que a pobrezinha vai ter que abandonar seu grande sonho.
A essa altura da conversa, já estou comovido até a raiz dos poucos cabelos com a generosidade daquele patrão que, depois de educar seus próprios filhos, decide amparar a filha de um dos seus empregados. É o que digo a ele, quase me levantando para beijar-lhe as mãos.
- Bom, professor, não é bem isso que eu queria dizer. O senhor me interpretou mal. O que eu vim pedir é que o colégio dê uma bolsa integral para a menina. Ela merece, professor!
Vocês já entenderam. Ele queria bater continência com o chapéu dos outros. Mais propriamente, com o chapéu do próprio colégio. Creio que não lhe passou pela cabeça que o mais lógico seria ele mesmo pagar pelos estudos da garota, já que a admirava tanto e era tão grato ao pai dela, pelos longos anos de bons serviços prestados. Além do mais, isso pouco lhe doeria nos bolsos que, pelo que se sabe, andam bem abastecidos.
Poupo-me de descrever sua cara de decepção quando lhe dei a papelada a ser encaminhada ao Serviço Social do colégio, que analisaria o pedido.
Realmente, a caridade é uma coisa linda, sobretudo se não nos custa nada além de alguns minutos de conversa fiada.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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