Colunas
A Cartilha e Eu
Se tivessem me acusado de ser burrinho em matemática, eu até ficava quieto
Não fossem elas meio tristes, eu lhes contaria hoje as aventuras e desventuras que enfrentei para aprender a ler e a escrever. Imaginem que, aos seis ou sete anos, eu já era considerado um caso perdido para as Letras Nacionais. Por essa época, tive um feroz desentendimento com a cartilha, ela achando que eu era burro e eu desconfiado de que ela era incompetente.
E olha que eu comecei cedo, porque minha mãe sempre teve a preocupação de nos fazer estudar, a mim e a meus irmãos. Possivelmente ela achava que seus filhos eram inteligentes bastante para chegar a alguma coisa na vida. Enfim, a coração de mãe tudo se perdoa! Lembro de mim, sentadinho junto a uma mesa comprida, rodeada de crianças pequenas como eu. A professora dava aulas numa varanda atrás da casa. De vez em quando, vinha lá da cozinha um cheiro de comida boa ou, pior ainda, o cheiro doce de doces. Impossível aprender nessas circunstâncias. Não vou falar em Einstein ou Freud, parece que na infância eles também eram meio burrinhos. Mas nem Rui Barbosa! E assim se explica o primeiro fracasso de minha trajetória intelectual.
Depois estudei com outra professora, e esta dava aulas na sala de sua casa, casa que infelizmente ficava no centro do bairro, local de muito movimento e novidade. Acreditem, até automóvel passava de vez em quando. O pensamento na rua me impediu de grandes conquistas culturais nessa segunda tentativa. Se alguma coisa aprendi ali, tudo tombou no mais profundo esquecimento, exceto um tombo que tomei num riachinho que passava ali por perto. Culpa naturalmente do prefeito, que não construía pontes, obrigando-me a tentar atravessar num pulo um riacho maior que minhas pernas.
Minha terceira experiência estudantil foi com um professor, também na casa dele. Quem sabe com esse eu teria aprendido alguma coisa, não tivesse sua digna esposa fugido com um vizinho, levando o nosso desconsolado mestre a fechar o seu templo do saber e sair, sem saber para onde, procurando a fujona.
Talvez tenha sido essa última tentativa frustrada de me desasnar, ou a idade que já me permitia estudar em escola pública, que levou minha mãe a me matricular num estabelecimento oficial. Começou aí o meu sofrimento. Até então, tudo bem. Eu não aprendia nada, mas pouco se esperava de um moleque tão pequeno, matriculado em escolas de fundo de quintal. No Grupo Escolar Padre Yabar, não. No Grupo era à vera.
Bastou pouco tempo de aula para que as professoras chegassem ao veredito unânime de que eu era um desastre no trato com vogais e consoantes. Na época, usava-se uma cartilha fornecida pelo governo, feita num papel escuro, deprimente, sem nenhuma ilustração para amenizar a severidade daquele infindável amontoado de letras. Ora bem, o governo era para mim qualquer coisa extraterrestre e o simples fato de a cartilha ter origem tão misteriosa já criava entre nós dois natural animosidade. Em pouco tempo a vitória da cartilha era completa! Eu é que não levava jeito. Desenvolvi um grande complexo analfabético, acabei me considerando um rematado mentecapto e creio que disso não discordavam os adultos que me rodeavam.
Eu poderia contar aqui como, tempos depois, reverti um pouco essa avaliação, mas a minha modéstia (pequena) e a grande falta de espaço do jornal me impedem. O que posso dizer é que, hoje, olhando para aqueles tempos, distribuo a minha má fama em partes iguais. Assumo que 50% pudessem ser burrice minha, mas jogo a outra metade para cima das professoras, dos métodos de ensino e da praga da cartilha feiosa.
Se tivessem me acusado de ser burrinho em matemática, eu até ficava quieto. Minha falta de habilidade com os números é espantosa. Apesar do que, modéstia à parte, sou o autor de um método de conferência infalível, chamado “prova dos cinco”. Não, nada de prova dos nove, que essa é coisa antiga. A prova dos cinco consiste no seguinte: se somo cinco vezes os mesmos algarismos, fatalmente dois totais acabam coincidindo. Serenamente aceito o valor assim obtido como resultado final, ainda que os outros três me pareçam igualmente razoáveis.
Bom, também não descarto a possibilidade de alguém terminar esta leitura com o seguinte comentário: “Quanto a ler, não direi nada. Mas quanto a escrever, é evidente que as professoras dele tinham razão!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário