Colunas
Brincando nas onze
Tinha chegado “a esta maravilhosa cidade” por causa de “uma senhora a quem muito amei”
Diz que já trabalhou nos maiores colégios do Brasil, mas os que cita ficam muito, muito longe, não dá para conferir. Quando questionado sobre a disciplina que leciona, apresenta um rol que vai do Latim à Educação Física. Nesse momento, me passa pela cabeça a figura gorducha de Gentil Cardoso, folclórico técnico do futebol carioca. Gentil é autor de uma famosa expressão da Língua Portuguesa, expressão que ele criou quando era treinador de um clube pequeno, não sei se São Cristóvão ou Madureira.
Querendo insinuar que o seu time seria campeão, hipótese em que ninguém podia pensar ou crer, Gentil declarou à imprensa: “Este ano vai dar zebra”, porque no jogo do bicho não tem zebra e, portanto, esse resultado seria de todo surpreendente. (Aliás, dizem que no jogo do bicho só tem dois animais: o burro e a águia, um que joga e outro que enriquece). Pois, certa vez, Gentil recebeu um jogador novato e perguntou-lhe em que posição ele atuava. O rapaz respondeu, com a pretensão dos incompetentes: “Eu brinco nas onze”. A resposta veio imediata e fulminante: “Pois então o senhor vá brincar em casa, que aqui não é lugar de brincadeira!”
Mas eu não dispenso o professor polivalente, que continua oferecendo seus serviços. Pode ensinar Latim, mas seu Português não inspira confiança. Também se diz disposto a encarar Educação Física, mas sua avantajada barriga de sete meses desrecomenda que se lhe atribua tarefa tão cansativa. Enfim, não vejo em que possa aproveitar seus múltiplos talentos e digo-lhe isso da maneira mais delicada possível. Não querendo se deixar vencer por tão pouco, ele se recusa a estender a mão para apanhar o papel que empurro de volta para seu lado. Trata-se de uma carta em que o professor Artenaldo Peixoto, diretor do centenário Internato e Externato Flor da Juventude, da cidade de Folhas Altas, em Roraima, muito o recomenda, como “cidadão de bem” e “insigne mestre”.
Tenho a tentação de também lhe dar uma carta de recomendação, endereçada aos outros colégios de nossa cidade. Nela, eu exaltaria o seu “português escorreito”, a sua “elegância indelével” e me assinaria Prof. Incontinênti Teixeira. Assim me livrava de tão “experiente educador” e me divertia às custas dos colegas que iriam recebê-lo. A má intenção, porém, dura pouco. Resolvo afastá-lo pelo medo, falo dos baixos salários, pinto os alunos como bestas-feras que ninguém consegue controlar, exagero a ignorância geral e acabo por admitir que muito o deslustraria dar aula para gente tão abaixo do seu nível intelectual.
Achando que não o estou levando devidamente a sério, o Rui Barbosa desempregado deixa ruir seu castelo de cartas. Na verdade, nem é formado, embora tenha aprendido “de um tudo” na escola da vida. Vivia num cantão do Brasil que fica dois passos depois do lugar onde o diabo perdeu a segunda bota e por lá ensinava, ou tentava ensinar, um pouco de cada coisa, que a ignorância local não exigia altos voos de sabedoria.
A “crise do ensino” se abateu sobre ele com a chegada do progresso, que inaugurou um grupo escolar e ali instalou duas professoras “assim meio que alfabetizadas” que, no entanto, foram capazes de lhe roubar a clientela. “Elas, não, professor, que para tanto não tinham competência. Mas a merenda escolar, essa, sim, é que me arruinou. Como é que eu podia lutar contra arroz com feijão de graça, professor?”
Resumindo, abandonou o magistério, ao qual por longos anos tinha engrandecido com sua competência e suas energias físicas e mentais e graças ao qual acumulara, bem ou mal, a volumosa barriga. Estava, portanto, declinou amargurado, “na condição de aceitar qualquer coisa”, era capaz de abandonar a caneta e varrer o chão, contanto que conseguisse emprego. Tinha chegado “a esta maravilhosa cidade” por causa de “uma senhora a quem muito amei” e a quem veio seguindo por esse Brasil sem fim, até que um carioca desalmado, e PM, ainda por cima, acabou por roubá-la de vez.
Tive pena daquele homem que entrara tão cheio de gás e de títulos e agora ia murchando a olhos vistos. Dei-lhe sugestões e palpites, por fim aconselhei-o a procurar a Assistência Social da prefeitura, que não há de nomeá-lo secretário de Educação e Cultura, como ele julga merecer e parece esperar, mas que, enfim há de lhe dar um prato de comida, uma cama para dormir, uma passagem de ônibus para que ele vá exibir em outra freguesia a sua glória e a sua decadência.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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