Bolas de gude

quarta-feira, 08 de junho de 2016

E, no entanto, ajoelhados ali no chão, neste momento, eles são conhecidos, companheiros, amigos

Daqui da janela vejo dois meninos jogando bolas de gude no pátio em frente. E cada um deles, alternadamente, dá pulos, socos no ar, risadas de vitória. A cada rodada, invertem-se os papeis e o que riu antes se cala e o que antes se calou faz um sinal como quem diz: “Viu, seu besta, como se joga?” Ao redor deles, quatro outros garotos assistem apreensivos à partida.

Como a janela está fechada, pois faz um frio que só as crianças não sentem, não ouço o que dizem, mas é fácil deduzir que os espectadores são sócios do empreendimento e suam ao verem suas fortunas crescerem ou minguarem a cada jogada do companheiro. A julgar pelo volume que aumenta em seus bolsos, o lourinho está ganhando e, por isso, seu cabelo solto gira no espaço, feito uma coroa de ouro levemente pousada sobre sua cabeça.

Mas o seu adversário, um pretinho esguio, não perde a calma dos movimentos, nem a graça do sorriso. E cada vez que o outro menino tira uma bola do triângulo riscado no chão, ele aponta para as que ficam e faz gosto de quem vai arrancá-la dali com uma só jogada.

A certa altura da disputa, parece que ele consegue mesmo, porque os dois assistentes que vinham mais acabrunhados se abraçam e riem exageradamente. Daí a pouco, todos se retiram e vão, em dois grupos de três, fazer um balanço dos lucros e dos prejuízos acumulados no primeiro round.

Confabulam demoradamente no centro do terreno. Tudo indica que vai haver uma partida revanche e o ambiente agora está mais tenso. Como apostadores que arriscam tudo numa só cartada, os seis moleques se concentram, discutindo as condições.

Os dois guerreiros continuam a batalha. E, embora disputando as mesmas bolas coloridas, embora rindo um do outro, embora se desafiando mútua e arrogantemente, são amigos. Vejo que são amigos, que se estimam sinceramente e que, mais do que as bolas que perdem ou ganham, o que lhes importa e dá prazer é estarem juntos e juntos realizarem o duro aprendizado do jogo da vida.

Sinto que o que eles desejam é prolongar a disputa, se acusarem de pequenas irregularidades e voltarem a se reunir amanhã, para que a fortuna hoje acumulada retorne aos bolsos de onde saíram. E nisso a ganância deles difere de outras que, quanto mais crescem, mais querem crescer, inchar, explodir.

É pena que esses dois pequenos vagabundos que hoje brincam lado a lado vão se tornar adultos, vão se separar, ou vão ser separados pelas injustiças, desigualdades e preconceitos do mundo. Seus jogos de adulto raramente vão lhes permitir essa pureza e essa alegria que lhes proporcionam duas bolas de vidro se chocando.

Amanhã, quem sabe, o simples fato de terem na pele cores diferentes vai fazer com que se afastem, se ignorem, ou até mesmo se odeiem. E, no entanto, ajoelhados ali no chão, neste momento, eles são conhecidos, companheiros, amigos. E o fato de estarem de lados opostos da mesma batalha não os divide, antes os une e fortalece.

Onde será, com quem será, que essas duas almas de passarinho que agora brigam tão fraternalmente vão aprender que são desiguais, que são estranhos, que o destino de um nada tem a ver com o destino do outro?

Pois se alguém lhes disser agora que eles são irmãos, eles não estranharão, nem darão importância e talvez apenas digam: “É, a gente já sabia”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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