Belezas e feiúras

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A beleza, ainda que não seja mais do que uma caveira bem vestida, torna bem mais agradável a nossa curta passagem por este mundo

No ramo de múmias e similares até hoje ninguém superou os egípcios. É verdade que recentemente os americanos elegeram uma para o senado, ao votar maciçamente num candidato que havia morrido três meses antes das eleições. Mas trata-se de um acontecimento esporádico, enquanto que os egípcios mumificavam no atacado. E tão bem que uma de suas obras, desenterrada 3.000 anos depois de ter sido enterrada (eu sei que ia ser difícil desenterrá-la sem tê-la enterrado antes, mas você está lendo para aprender sobre múmias ou para ficar me criticando?) Pois, como eu ia dizendo, a dita foi desenterrada e saiu do sarcófago com tão bom aspecto que mereceu de um dos presentes o seguinte comentário: “Conheço muita gente ainda viva que está bem mais acabada”.

Nada de se admirar, pois o tempo, que com tanta complacência trata as múmias, é bastante severo com nós outros, que provisoriamente (muito provisoriamente, diga-se a bem da verdade) estamos cá em cima da terra. Cronos, esse deus incompetente, em vez de lapidar nossa aparência, vai dilapidando-a aos poucos, tão lentamente que nem sentimos, mas tão incessantemente que, de repente, nem adianta mais sentir.

Tais foram os inúteis conhecimentos e as ainda mais inúteis reflexões que me vieram à cabeça quando chamaram minha atenção para um conhecido que passava e a quem não eu não via há alguns anos. Lembrei-me então das fotos, cruelmente publicadas pela imprensa, mostrando o francês Alain Delon, entre os vinte e os sessenta anos. Posso assegurar que o estrago foi considerável. Isso sem falar em Marlon Brando, esbelto entre os esbeltos, até que... de quilinho em quilinho, acabou mal cabendo nas telas dos cinemas. Sorte dele que já tinham inventado o cinemascope, a tela panorâmica, o home theater e outras grandezas, se não, o grande ator (duplo sentido) teria sido abandonado pela carreira, caso insistisse em não abandoná-la antes.

Mas o cavalheiro em questão compensava amplamente o possível prejuízo que causava à paisagem, porque trazia consigo uma de suas filhas. E essa, minhas senhoras e meus senhores, era tão linda que, fazendo-se a média entre a feiúra do pai e a formosura da filha, ainda sobrava beleza. O Pe. Antônio Vieira perguntou o que é a formosura senão uma caveira bem vestida. É verdade. Mas também é verdade que há caveiras esplendidamente bem vestidas. Ali estava uma. Quanto à outra...

 A outra certamente já não se olha mais no espelho, um pouco em consideração a si mesma, um pouco em consideração ao espelho, que não tem culpa de nada. A moça, no entanto, olha-se a todo instante e pergunta: “Existe alguém no mundo mais bela do que eu?”, a que o interrogado nada responde por ter perdido a voz, ao ver diante de si tamanha concentração de encantos. Mas talvez diga para si mesmo: “Por essas e outras é que me chamam de Espelho Encantado”. 

Sim, a beleza, ainda que não seja mais do que uma caveira bem vestida, torna bem mais agradável a nossa curta passagem por este mundo. Embora, como tudo neste mundo, também beleza e feiúra sejam coisas bastante relativas. Por exemplo: outro dia encontrei um amigo e ele trazia a neta ao colo. Não gosto de ser desagradável com ninguém, mas, por mais tolerante que eu seja com as caras alheias, vejo-me obrigado a dizer que esse cidadão é bem feiozinho, benza-o Deus. E digo isso humildemente, pois a triste verdade é que também eu há algum tempo evito os espelhos, por não gostar do que vejo neles quando me olho.

Pois bem, tendo a menininha (que — mistérios da genética! — é uma coisa linda) reparado que tanto seu avô quanto eu usávamos bigode, caí na besteira de perguntar a ela qual de nós dois era mais bonito. Pois vocês acreditam que a danadinha apontou o dedo na direção do avô?!

Ora, se eu for mais feio do que ele, francamente, serei obrigado a acreditar na existência de pessoas ainda vivas e, no entanto, mais acabadas do que as múmias que de quando em quando os arqueólogos desenterram lá no Egito. Mas essa é uma questão a ser esclarecida quando eu encontrar meu amigo de novo e, estando eu com a minha neta, fizer a ela a mesma pergunta que foi tão mal respondida pela outra garotinha.

 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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