Autorretrato retocado (Photoshop)

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O fato é que tentei ficar famoso trabalhando, não consegui; escrevendo, não consegui. Fiquei famoso andando na rua. É o Brasil!

 Todas as pessoas que se atrevem a avaliar minha idade me dão de cinco a dez anos a menos. Talvez sejam maus observadores, talvez sejam apenas generosos ou, e esta é a hipótese que mais me agrada, realmente eu pareça mais jovem do que sou.

O fato é que dentro de no máximo 30, 40 anos, já não terei mais idade nenhuma. Serei apenas uma foto que ficou esquecida em alguma gaveta, vaguíssima lembrança, nuvem, poeira cósmica, eternidade.

Gosto muito de ler e também escrevi e publiquei umas tantas palavras, de que pouca gente tomou conhecimento e, para falar a verdade, ninguém perdeu grande coisa com isso. Detesto a quase totalidade dos programas de televisão, aparelho que só ligo para ver o noticiário e às vezes um jogo de futebol. Sou flamenguista moderado: se o time ganha, fico contente; se perde, não fico triste. Torço por qualquer time brasileiro contra qualquer time estrangeiro e pela seleção brasileira em qualquer circunstância.

Acompanho a política, mas dos políticos tenho a mesma opinião que a maioria dos brasileiros. Não escrevo qual em respeito à sensibilidade do leitor, que certamente não aprecia baixarias e também em consideração aos políticos honrados, que até existem, embora sejam mais raros do que dia de calor no Polo Norte.

Católico ecumênico, penso como o rei Francisco I, da França, que se recusou a aceitar o Tratado de Tordesilhas, que dividia o mundo entre Portugal e Espanha, e não acredito que Deus tenha firmado contrato de exclusividade com nenhuma religião. Não tenho qualquer merecimento para entrar no céu, mas sou de opinião que Deus esquece a maioria das besteiras que a gente faz aqui embaixo e melhor se lembre dos nossos acertos. Minha esperança é essa: que Deus tenha memória curta e seletiva, porque, se assim não for, ai de mim!  

Sou muito conhecido na cidade, não por ser um cidadão importante, mas porque faço uma caminhada diária do Centro ao Cônego e todo mundo repara em mim. Minha mulher diz que é por causa das roupas que uso para caminhar. Ela diz também que se eu der essas roupas para um mendigo, ele vai recusar, por uma questão de mínima elegância. Ainda não fiz essa experiência. Quem sabe depois de usá-las um pouco mais, digamos, por três ou quatro anos. A bem da verdade, acho que a roupa é que é conhecida, e não eu. O fato é que tentei ficar famoso trabalhando, não consegui; escrevendo, não consegui. Fiquei famoso andando na rua. É o Brasil!

Em geral, não penso muito na morte, acho que ela não precisa disso, o risco de que ela me esqueça é zero. Infelizmente. Contudo, pretendo evitá-la enquanto puder. Envelhecer não é bom, mas, tenho a mesma opinião daquele senhor que, ao fazer cem anos, foi entrevistado por um repórter.  “Como o senhor se sente ao completar um século de vida?”, perguntou o rapaz. “Bem”, respondeu o ancião, “a outra opção era pior”.

Gostaria de ter muitas e grandes qualidades. Mas tenho poucas e pequenas. Meu maior defeito é não conseguir achar nenhum grande defeito em mim, razão pela qual procuro também não achá-los nos outros.

Minha vida profissional pode ser resumida em poucas palavras: muito trabalho e pouco dinheiro. Comecei como carregador de almoço, profissão nobre na época e hoje extinta. Trabalhei em fábrica e em banco, sem ter contribuído muito para o crescimento da produção industrial brasileira, mas também sem ter levado à falência o sistema bancário nacional.

Finalmente professor por longos anos, combati o uso da palavra “menas” e outras barbaridades, mas todas resistiram bravamente e quando eu já estiver no céu (espero!) há milênios, os brasileiros ainda estarão aqui na Terra, falando como bem entenderem, sem dar confiança para gramática, autores de gramática e professores de gramática.

Enfim, digo que sou uma pessoa bem comum, e isso já é me enaltecer bastante. Orgulho-me, no entanto de ter recebido um elogio que poucos homens neste mundo, incluindo os astros de Hollywood e os galãs da televisão brasileira, hão de ter recebido. Certa vez uma senhora me chamou de “bonito, romântico, majestoso”. Ora, para mim, o fato de ela estar internada numa clínica para doentes mentais não diminui em nada o valor do elogio. E talvez seja útil informar à posteridade que eu estava na citada clínica apenas fazendo uma visita.

Faço parte da Academia Friburguense de Letras, onde entrei com a esperança de tornar-me imortal. A ilusão se desfez quando comecei a observar que outros imortais, mil vezes mais imortais do que eu, começaram a morrer. Enfim, creio que mesmo os grandes escritores prefeririam a imortalidade continuando vivos do que realizando qualquer obra, por melhor que fosse. Um dia de sol e céu azul vale mais do que Dom Quixote e Hamlet juntos.

Toda vez que pego esse texto, descubro uma coisa nova para acrescentar. Haja paciência do leitor, se é que algum deles chegou até aqui. Então, para dar um basta nessa conversa que já se alongou demais, o jeito é escrever a mais definitiva e irrevogável de todas as palavras: FIM.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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