Anáguas e ceroulas

quarta-feira, 05 de dezembro de 2018

Por que não mudariam as mulheres, que são os seres mais mutáveis que há sobre a face da terra?

Alguns de vocês ainda hão de se lembrar do tempo em que as mulheres usavam anágua. Muitos fingirão não saber do que estou falando, porque essa palavra é tão antiga que só admitir que a conhece já é uma confissão de velhice. Se bem que sempre podemos dar a desculpa de que a lemos num livro antigo, do tempo em que a farmácia ou se chamava botica ou era escrita com ph. Quanto à anágua, eis o que nos diz o Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras, que, tendo mais de trinta mil verbetes, não ia deixar esse de fora: “Anágua s.f. Espécie de saia que se usa sob o vestido ou outra saia”. 

Não querendo corrigir os doutos acadêmicos, ouso fazer uma observação sobre o tempo verbal da definição: não se usa, usava-se. Nos tempos de antanho, a anágua era uma peça que tinha a pudica função de impedir que as roupas, ao se amoldarem ao corpo das mulheres, deixassem transparecer formas, curvas, reentrâncias e contornos. Sim, foi-se o tempo em que se esperava que as mulheres ocultassem suas belezas, e mais as ocultassem quanto maiores as belezas fossem.

Tudo muda. Então, por que não mudariam as mulheres, que são os seres mais mutáveis que há sobre a face da terra? De modo que atualmente elas mais exibem do que ocultam suas formosuras. E, perdida em meio a tanta beleza agora visível, perdeu-se a anágua, e tão perdida quanto a anágua ficou a palavra que a representava, a qual hoje só pode ser encontrada nos dicionários e na cabeça dos cronistas sem assunto.

Mas não só a indumentária feminina mudou com o passar do tempo. Quem se lembra das ceroulas, que substituíam as cuecas, e tinham a vantagem adicional de proteger as canelas contra o frio? E o que dizer das galochas, aquele calçado de borracha que se usava sobre os sapatos, para evitar que a água da chuva penetrasse nos pés? Utilíssimas, sobretudo quando, por pobreza ou descuido, o sapato estava furado. As galochas, antes de serem relegadas ao esquecimento pela ingratidão masculina, evitaram muitos resfriados neste mundo.

Tudo muda, as próprias palavras não se cansam de mudar. O poeta Tomás Antônio Gonzaga, para impressionar a amada Marília, assim se vangloriou de suas riquezas: “Tenho meu próprio casal e nela assisto”, verso que, em linguagem mais atual e menos poética, traduziríamos por: “Tenho meu sitiozinho e vivo nele”. Ou, ainda menos poeticamente: “Casando comigo, não vais passar fome nem morar na rua”.

Já o velho Camões dizia que “Todo o mundo é composto de mudança”, para lamentar, alguns versos adiante, “que não se muda já como soía”. Soer é desses verbos que sobrevivem apenas entre as páginas dos dicionários, embora algum saudosista ainda o possa usar, já que coisas assim fora de época soem acontecer entre os saudosistas.

Enfim, as palavras, como as roupas e tudo que é humano têm seus momentos de esplendor, e depois são ofuscadas, perdem o brilho, desaparecem ou, no mínimo, viram esquisitices.

De alguém ignorante não se diz mais que é um apedeuta, nem se acusa uma mulher pouco séria de ser uma sirigaita. A um bêbado não se repreende por estar na maior carraspana, nem se castigam as crianças por terem feito uma fuzarca na casa. Nada disso impede que continuem a existir pessoas ignorantes, mulheres pouco sérias, bêbados em alto grau, ou crianças bagunceiras. As palavras têm o poder de mover o mundo, mas o tempo tem o poder de remover as palavras.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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