Colunas
Amor, amores
A paixão, caros apaixonados, é pura pirotecnia do coração: explode intensamente, brilha belamente e se apaga rapidamente
Venhamos e convenhamos: há casos e casos. Velório, por exemplo. Nos Estados Unidos, tem almoço e janta, rola cerveja e uísque. Dá gosto ir a um velório assim. Aqui no Brasil, quando muito servem um cafezinho requentado. Nossos velórios são, no geral, tristes e cansativos. Talvez por isso um conhecido meu diz que só irá ao dele, e assim mesmo contra a vontade. Mas eu estive num em que só a muito custo a viúva conseguia segurar o sorriso. Seus olhos, no entanto, brilhavam de alegria, e não sem razão. O falecido era um chato de galocha, que ela vinha aturando desde os tempos das galochas. Hoje em dia, livre, leve e solta, vive esbanjando todos os sorrisos que reprimiu naquele dia.
Não se deduza daí que a união que ali se encerrava tenha sido uma farsa. O amor deve ter existido, pelo menos no início, mas o tempo, roedor implacável, é capaz de fazer buracos até nos sentimentos mais sólidos. Ou talvez não fosse bem amor, essa palavrinha mágica que é usada para designar tantas coisas diferentes que acaba não designando nada. Amor ao dinheiro é amor? Amor ao futebol é amor? Tem gente que parece amar o cigarro, espécie de amor suicida, em que, parodiando um sucesso musical dos anos 70, pode-se cantar: killing me softly with its smoke (vocês se lembram: “Singing my life with his words/ killing me softly with his song”).
Sim, há casos e casos. Em matéria de amor, nem se fala. Li que os cientistas também não sabem direito o que é amor, mas conseguiram distingui-lo da paixão. Que vem a ser, em linguagem de leigo, um turbilhão químico que acontece dentro da gente quando supomos ter encontrado o verdadeiro amor. A sensação é a maravilha das maravilhas, pena que dure pouco. Porque, segundo os cientistas, toda aquela fogueira que o corpo produz quando estamos apaixonados não passa de fogo de palha, dura no máximo quatro anos, cinco anos. A paixão, caros apaixonados, é pura pirotecnia do coração: explode intensamente, brilha belamente e se apaga rapidamente.
Depois disso, resta, ou não, o amor. Como explicá-lo? A ele se aplica a poética definição de Cecília Meireles para a liberdade: “... essa palavra que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”. Ou a explicação de Santo Agostinho sobre o tempo: Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei".
“No livro “Pequenos Tratados das Grandes Virtudes”, André Comte-Sponville pondera que, sobre o amor, “Tudo talvez já tenha sido dito. Falta compreender”. Para tentar compreendê-lo, o filósofo distingue três formas diferentes de amar.
A primeira, Eros, é essencialmente desejo e “o desejo se abole em sua [própria] satisfação”, pois “o prazer é a morte e o fracasso do desejo”. Assim amamos o que nos falta e, no instante mesmo em que o conseguimos, deixamos de amar, para voltar a amar quando de novo a falta nos oprimir. Eros é o amor do corpo.
Depois vem Philia, uma amizade tão profunda que “é como que a transparência da alegria, como que sua luz, como que sua verdade conhecida e reconhecida”. Philia é o amor que une os casais verdadeiramente amantes, sem dispensar Eros e ansiando pela terceira forma de amor.
Que vem a ser Agapé. Na definição de Comte-Sponville, “um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação”, como o amor de Deus por suas criaturas, com o qual, aliás, “Deus nada tem a ganhar (...) pois nada lhe falta”. Por ser a suprema gradação do amor, essa maneira de amar não é humanamente possível, pelo menos não em sua plenitude. Mas, como bem entendeu o apóstolo Paulo, ela vale até mesmo mais do que a fé ou a esperança.
Enfim, voltando ao começo da conversa, há casos e casos. Qual seria o caso daquela viúva indisfarçavelmente feliz no sepultamento do marido? Na idade dela, Eros já era, Philia talvez nunca tenha existido. Mas Agapé, o amor que é somente generosidade, compaixão, fidelidade, esse resiste a tudo, até mesmo à morte, e se aplica a todos, até mesmo aos chatos de galocha.
22.02.09
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário