Almoço em escola de samba

quarta-feira, 23 de março de 2016

Vitorioso no pleito democrático, o estrogonofe logo se tornou a grande expectativa do bairro

Imagine almoço em escola de samba. Brota aquela fome secular, que vem do tempo das caravelas, percorre todos os cantos do país, atravessa toda a história de um povo em constante estado de inanição. Almoço em escola de samba é fome hereditária, coletiva. Cada um dos desnutridos olha para as caras esfomeadas da mesa ao lado e sente a própria fome crescer na contemplação da fome alheia. De repente, o barracão inteiro é um estômago vazio, são entranhas que roncam furiosas.

Pois bem, trata-se justamente de um almoço em escola de samba. Domingo de sol, caipirinha e cerveja despencando em cascata desde 9 horas e já são quase 12. O objetivo é juntar grana e pagar as costureiras. Só porque no ano passado ficaram no ora veja, elas agora não querem entregar as fantasias a não ser à vista do dinheiro. No afã de alcançar tão nobre ideal, venderam-se pra mais de 500 convites. O presidente da entidade chegou a nomear um secretário extraordinário para assuntos gastronômicos. A escolha recaiu sobre um associado que, por mais de 20 anos, administrara um bar famoso pela qualidade de seus salgadinhos. Verdade que cada salgadinho era consumido juntamente com três dedos de cachaça, de modo que teria sido mais prudente relativizar a opinião dos fregueses.

Mas em nada disso se pensou na hora e o novo diretor logo assumiu o comando da operação, estabelecendo as quantidades de ingredientes necessários para alimentar a multidão. Houve grandes debates a respeito de qual seria o prato do dia. O assunto foi posto em votação, em reunião de diretoria, tendo-se chegado aos seguintes resultados: angu à baiana: três votos; feijoada: quatro votos; estrogonofe de carne: seis votos.

Vitorioso no pleito democrático, o estrogonofe logo se tornou a grande expectativa do bairro. No dia do evento, bancos, cadeiras e caixotes foram espremidos na quadra, pratos e talheres cada um trouxe os seus, copos eram de papelão.

Meio-dia e 30 começa a distribuição do rango. Às 13h30 já o estrogonofe rareava, o arroz encolhia-se no fundo dos panelões. Às 14h, metade do povo do estrogonofe só tinha sentido o cheiro. O presidente subiu ao palco e pediu paciência à multidão, garantindo que já-já vai sair o melhor estrogonofe que vocês comeram na vida.

 Enquanto a boia não chegava, o jeito era ir enganando com mais batida e cerveja. Às 14h15, o povão começou a bater com os talheres no prato e o barulho cresceu tanto que mais parecia um ensaio geral para o desfile. A primeira-dama, vendo a sinuca em que o marido estava metido, e lembrando-se do antigo juramento — na alegria e na dor, na saúde e na doença —, tentou falar ao microfone. Mal pronunciara a saudação: “Minha gente amiga...” já do meio da horda veio a resposta: “Sai fora, pelancuda!”, logo seguida por outra: “Chama o chifrudo do teu marido!” Assustada, a digna senhora retirou-se para os bastidores, onde o alto comando se rendia à evidência de que não tinha como aplacar a sanha da turba famélica.

Após sucessivas deliberações, em que vários escolhidos declinaram da honraria, o diretor social foi indicado para apaziguar a corja. Antes dele, já abrira mão da incumbência o tesoureiro (“Eu sou cobrador, vou ser mal recebido”), o assessor de imprensa (“Meu coração não vai aguentar tanta emoção”) e o mestre-sala (“Hoje estou completamente afônico”). Mas a vaidade do diretor-social não resistiu ao elogio que lhe fizeram: “Você é um diplomata, o homem certo para os momentos de crise!”

 Assim adulado, lá se foi o homem, pegou o microfone, pediu um minuto da vossa preciosa atenção e pigarreou. Vista do alto do palco, a plebe mais parecia uma assembleia de vampiros, olhos arregalados, os dentes à mostra, fazendo com os talheres o barulho de mil zabumbas.

O diretor social tremeu nas bases. Como ser diplomático às três da tarde, num domingo de fome, sol, cerveja e caipirinha? “Vocês querem estrogonofe?”, perguntou ele, da maneira mais delicada que pôde. “Queremos!” rugiu o populacho em resposta. E foi aí que o diretor social mostrou porque tinha adquirido o apelido de Itamarati: “Uma coisa é vocês quererem, outra coisa é vocês comerem!”

O primeiro prato bateu na testa do locutor oficial, o segundo atingiu a porta-bandeira, embora esta tentasse se proteger com uma panela vazia. O resumo da história é o seguinte: as costureiras não receberam, mas a escola também não desfilou. E o presidente até hoje anda querendo saber de sua digna esposa por que o chamaram de chifrudo.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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