Ética é (e não é) amor

sábado, 26 de agosto de 2017

O grego antigo possuía, pelo menos, três diferentes vocábulos para expressar o que, em português, acumulamos na palavra e na ideia de “amor”.

Um desses termos é “eros”, “desejo”. Quem melhor refletiu a respeito de “eros” foi Platão, em O Banquete. O filósofo narra a gênese de Eros como fruto da disponibilidade de Poros (o Expediente) e da carência de Pínia (a Pobreza). Eros é eternamente carente, herdeiro da personalidade materna e do estilo paterno de estar sempre à espera; é, assim, o símbolo do amor necessitado, que não se concretiza, já que o objeto do desejo sempre escapa de suas mãos.

A ideia básica de “eros” é a de “desejo”. Amar é querer. É um pouco esse ímpeto, que habita o coração humano, por transcendência, de querer ir além do lugar em que se está. Talvez seja a raiz de persistência ou de cobiça, de desejo ou de compulsão, de vontade ou de consumo – e, óbvio, suas virtudes e mazelas combinadas.

Outro termo que os gregos usavam com frequência é “philos”, "amizade". Tem a ver com amor como “amor virtuoso” e “desapaixonado”, com lealdade aos amigos, à família e à comunidade.

Como conceito, “philos” foi desenvolvido por Aristóteles, no tratado de Ética a Nicômaco e na Retórica. A ideia central é a de fazer bem por alguém de modo que sujeito e objeto da ação sejam contemplados e se sintam “bem”.

Diferente do “eros” que deseja o que não se tem, “philos” é o amor por aquilo que se possui. Tem a ver com regozijo, com deleite, com desfrutar do que se tem na vida e com quem se divide a caminhada.

O terceiro termo utilizado pelos gregos para complementar a ideia de “amor” é “ágape”. Se refere a uma afeição mais ampla do que à atração de “eros”; o “ágape” é usado para designar sentimentos como uma boa refeição, a afeição de uma criança e os sentimentos não carnais entre cônjuges. Pode ser descrito como o sentimento de estar satisfeito ou de se ter em consideração elevada.

O verbo aparece no Novo Testamento e descreve, entre outras coisas, o relacionamento entre Jesus e o seu discípulo amado. Nessa literatura, seus significados são auto-sacrifício e disposição de amor a todas as pessoas, amigos e inimigos (como Mateus 22,39: “ame seu vizinho como a si mesmo”; ou em João 15,12: “o meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei”). Mas é negativa também (como em II Timóteo 4,10: "Dimas me abandonou, por amor das coisas do século presente”).

A ideia permanente de “ágape” é a de um amor incondicional que torna quem ama capaz de desejar assumir o lugar do outro, por exemplo, nas suas experiências de sofrimento. Tem a ver com solidariedade, compaixão e sacrifício.

Em resumo, “eros” é o amor pelo que não se tem; “philia”, pelo que se desfruta; “ágape”, amor capaz de se colocar no lugar do outro.

Essa dinâmica toda, no entanto, tem a ver com a “pessoa” e com relações entre “pessoas”. O desafio que se colocava para os gregos – e permanece atual – é quando a relação extrapola aquilo a que se ama e exige “amor” (ou respeito) pelo “desconhecido”. É exatamente aí que nasce o que os mesmos gregos denominaram “ética”.

Em outras palavras, aquele momento em que não faço o “certo” porque amo, mas, simplesmente, “porque é o certo”, independentemente do que “sinto”. Há ética quando há conduta consciente; quando se faz aquilo que se decidiu fazer e não porque as outras pessoas, por exemplo, também estão fazendo. Ética parte da vontade pessoal, mas considera o lugar do outro e a hombridade de se responder pelo que se faz (ou pelo que se omite). É uma mescla de vontade, alteridade e responsabilidade. Além, é claro, da liberdade – porque se trata de decisão pessoal.

Não há ética de conveniência – aquela na qual o “bom” é o que eu amo ou o que me favorece. Ética, ao contrário, é esforço da inteligência para conhecer o que é o correto e força do espírito para decidir por realizá-lo.

Quando se diz, por exemplo, que “o amor aceita tudo”, incorre-se no oposto de ética. É para o que o professor Cortella adverte: “A pessoa que seja capaz de amar é aquela que recusa aquilo que faz mal, por isso um pai e uma mãe não pode jamais dizer ao filho ‘é porque eu te amo, então tudo aceito’. É exatamente o inverso. (...) A ética do amor não é a ética da conveniência em que as coisas valem a partir de qualquer momento, mas uma ética que é capaz, também, de dizer ‘não’ ao que tem que ser recusado.”

Em síntese: ética é reprodução do amor que nasce da vontade livre e racional do indivíduo, que reconhece o lugar do outro e responde integralmente por seus atos e omissões.

É nesse sentido que ética é amor – na medida em que se busca agir racionalmente (tal como se amasse) em situações em que efetivamente não há amor. Em outras palavras, a ética é uma ação “amorosa” para os casos onde, na prática, não há amor.

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